Folha de S. Paulo


Natureza-morta com clipe e grampo

Quando Rita Lee disse que amor era bossa nova e sexo era Carnaval, ficou evidente que ela sabia muito mais do que eu sobre amor, sexo, bossa nova e Carnaval.

Não foi uma grande surpresa: ela é uma estrela do rock e eu sou um simples sujeito, e toda a gente sabe que as estrelas do rock dominam aqueles assuntos muito melhor do que simples sujeitos. E basta olhar para estrelas do rock e para simples sujeitos para distingui-los —exceto, talvez, no caso de Elvis Costello.

Acresce que aquelas metáforas me são inacessíveis: sou de um país que não tem bossa nova e no qual o Carnaval decorre no inverno. Desfilar sob uma chuva gelada redunda muito menos vezes em sexo do que em gripe. Em Portugal, Carnaval não é sexo, é duche frio. Ou seja, o exato oposto do sexo.

Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

Por isso, para efeitos de metáfora, tenho apenas à minha disposição o que a minha vista alcança. No caso, os objetos que se encontram sobre a minha secretária. Um clipe e um grampo. Descortinar símiles na bossa nova e no Carnaval é fácil, com todo o respeito.

Mas arrancar figuras de estilo de material de escritório requer alguma habilidade. Infelizmente, eu não a tenho. Mas, uma vez que disponho de bastante tempo livre, posso tentar.

Qual desses, o clipe e o grampo, é amor, e qual é sexo? Talvez o clipe seja amor. Tal como o amor, o clipe é um pequeno milagre de engenharia. Faz falta um historiador do clipe, que descreva o exato momento em que alguém, necessitado de agrupar temporariamente algumas folhas, disse: "Já sei: vou retorcer um ferrinho."

Há um certo descompromisso no clipe —como no melhor amor. Mantém as folhas juntas, mas não as prende demasiado. Elas são livres de ir embora quando quiserem. Talvez partam com um vinco, que pode mesmo ser profundo, mas, enquanto estão juntas, é um querer estar preso de livre vontade.

O grampo, em princípio, é sexo. Até porque envolve penetração. Ou talvez o grampo seja casamento.

É isso: clipe é amor, grampo é casamento. Como todo mundo que já amou e contraiu matrimônio sabe, amor e casamento são perfeitos antônimos. É por isso que as tragédias costumam acabar com uma morte, e as comédias costumam acabar com um casamento. O casamento é o fim da comédia. E o princípio da tragédia.


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