Folha de S. Paulo


Desliga e liga de novo

Tenho um projeto: estou a tentar adquirir um tique.

Não sei se o verbo mais apropriado é adquirir ou desenvolver. Creio que em determinado passo terei de investir no desenvolvimento –mas no final haverá, se tudo correr bem, aquisição.

Tenho muita admiração pelas pessoas que têm tiques. Nem acadêmicos nem poetas têm dedicado suficiente atenção ao charme de um bom tique. Um tique sutil e não muito frequente é irresistivelmente sedutor.

Um olho que, de vez em quando, pisca com mais força, por exemplo. Quando o meu interlocutor possui um desses tiques, tomo subitamente consciência de como sou desinteressante. Depois passa um pouco e eu já esqueci a minha inferioridade, mas entretanto ele pisca outra vez, lembrando-me de que aquele olho, ao contrário dos meus, tem a sua vida. Tem uma personalidade, inquieta-se, estremece. Entretanto os meus olhos permanecem na sua rotina burocrática.

As pessoas que usam óculos têm a vida facilitada. Óculos proporcionam bons tiques, quer seja o despreocupado toque do indicador na parte central, reenviando-os para junto da glabela, quer seja o gesto de pegar na armação, à volta de uma das lentes, para voltar a colocá-los cuidadosamente a cavalo do nariz.

Luiza Pannunzio/Folhapress

No outro dia ocorreu-me que, se as pessoas fossem máquinas, talvez não tivessem tiques. Há uma operação com que todos nós, engenheiros amadores, já conseguimos consertar um eletrodoméstico, e que consiste em desligá-lo e ligar de novo.

Muitas vezes me tem confortado a ideia de que um gênio como Isaac Newton desconhecia uma regra científica que eu domino: que, se a gente desligar uma coisa e voltar a ligá-la, há uma probabilidade forte de ela voltar a funcionar bem.

Ora, talvez houvesse vantagens se a técnica pudesse ser aplicada em pessoas. Ela já não me ama. Desliga e liga de novo. O meu filho deixou de me escutar. Desliga e liga de novo. Em 2017, ele ainda acha que homossexualidade é doença. Desliga e liga de novo.

Mas, se isso fosse possível, provavelmente acabavam-se os tiques. "O seu olho piscou forte outra vez, Fernando. Deve ser um bug. Vou desligar e ligar de novo."

Seria uma pena. Apesar de tudo, talvez seja melhor assim.


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