Folha de S. Paulo


Sommelier de silêncios

Os animais têm boa imprensa. É muito raro vermos um cão com a seta para baixo, naqueles balanços que os jornais fazem sobre as figuras que estiveram mal na semana, ou um gato criticado num editorial.

Não é que cães e gatos não tenham opiniões estúpidas. Eles só não as verbalizam. Um imbecil calado consegue camuflar durante muito tempo a sua condição de imbecil. Os meus cães, por exemplo, têm a opinião de que o meu gramado fica melhor com buracos. E parece-me que a minha gata considera que seria interessante saber que aspecto teriam os meus olhos se retirados do crânio.

Sucede que eles não proferem essas opiniões. Nas fábulas, os animais são ressentidos, altivos, dissimulados, manhosos, vingativos, avarentos, egoístas, velhacos. Na vida real, são adoráveis. A diferença é que, nas fábulas, eles falam.

Certos rústicos deixam-se enganar pela aparente simplicidade do silêncio e são levados a concluir que só há um tipo de silêncio. Não é o meu caso. Eu sou um sommelier de silêncios. Sei ver muito depressa se é um silêncio tenso, ou íntimo, ou embaraçoso, ou tranquilo.

Se um casal diz: "A gente já não fala", em princípio, a relação acabou. Mas, quando outro casal diz: "A gente já nem precisa falar", aí a relação está melhor do que nunca. Porque há muitos silêncios diferentes, e é preciso apurar o paladar para eles.

Luiza Pannunzio/Folhapress

Infelizmente, a tecnologia parece apostada em suprimir o silêncio. Com o celular, estamos contatáveis em todo lado, a toda hora. Faz falta, aliás, um estudo sobre a influência do telefone no amor. Eu tenho tomado umas notas. De acordo com as minhas observações, o modo como os amantes se relacionam com o telefone define a relação. No início, como é sabido, eles dizem:

– Desligue você.

– Não, não consigo, desligue você.

– Ah, não. Desligue você.

Ao fim de 20 anos de casamento, eles dizem:

– Não há luz na cozinha, ligue para o eletricista.

–Por que eu? Ligue você!

– Eu já faço tudo, ligue você!

– Ah, não. Ligue você!

No início há uma luta lânguida para ver quem desliga; no fim há uma luta sangrenta para ver quem liga. No início eles têm horror ao silêncio; no fim sonham com ele. O silêncio tem sido muito maltratado. E o pior é que a gente tem assistido a tudo em silêncio.


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