Folha de S. Paulo


Sobre cães e gatos

Luiza Pannunzio/Editoria de Arte
Luiza Pannunzio 18.ago.2017

"Você é uma gata" é um elogio. "Você é uma cadela" é um insulto –e dos pesados. Aqui está um interessante problema de semântica zoológica. De onde vem a má reputação dos cães? Nos livros, aparecem quase só para morrer.

A Baleia do Graciliano Ramos, spoiler alert, leva um tiro. O Argos de Ulisses espera pelo dono durante 20 anos e morre assim que satisfaz o desejo de vê-lo. Mas os gatos têm um prestígio literário impecável. Nem o Cheshire Cat da Alice nem o gatarrão amigo do Diabo em "O Mestre e Margarida" levam um tiro –e mereciam.

Anda por aí um famoso espetáculo musical sobre gatos. Não ocorre a ninguém escrever uma ópera rock sobre cães. Os gatos são protagonistas sofisticados, os cães são bobocas sem classe. Quando, há pouco tempo, além dos meus quatro cães passei a ter um gato, comecei a perceber a razão do fascínio.

De fato, é um bicho que nos despreza de uma forma muito elegante. Está evidentemente convencido da sua superioridade em relação a nós, e é capaz de ter razão.

Mas, apesar de seduzido pelo gato, mantenho-me firme no meu entusiasmo em relação aos cães. Os gatos sabem qualquer coisa; os cães são tão estúpidos como eu –o que lhes dá um encanto muito especial.

Os gatos parecem ter uma informação importante acerca do que é isto de estar vivo; os cães não fazem ideia do que andam aqui a fazer. Acham quase tudo espantoso, e não têm vergonha desse maravilhamento constante, apesar de ser tão parecido com estupidez. Os cães são crianças pequenas, os gatos são filhos adolescentes: também nos amam, embora com alguma relutância, e acham mesmo que são independentes, apesar de continuarem a precisar de nós para comer.

Um gato é uma fraude ostensiva, uma ironia da natureza: parece um tigre, move-se como um tigre, pensa que é um tigre –mas pesa menos de 200 quilos.

Quando não está a dormir, é bastante óbvio que o meu gato se encontra a planejar o meu homicídio. Mas de um modo adorável. Vejo os olhos dele, quando me espreita, emboscado atrás do computador, e eu próprio começo a simpatizar com a ideia de que mereço morrer. Em raros momentos de ternura, aproxima-se de mim e lambe o meu nariz com o que parece ser lixa para madeira. É carinho e esfoliação. Amor doloroso. O cão é o melhor amigo do homem; o gato é o melhor inimigo.


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