Folha de S. Paulo


Luta de classes vocabular

Certas palavras têm mais prestígio do que outras. A palavra desfalque olha de cima para a palavra roubo –e, por isso, o elegante autor de um desfalque distingue-se de um vulgar ladrão. As sentenças judiciais costumam ser bem mais pesadas para o segundo, por pouco que ele roube, do que para o primeiro, por mais que ele desfalque.

Ora, a minha vida decorre inteiramente num universo lexical desprovido de prestígio. Tirando fugazes momentos em que, no entender de certos operadores de telemarketing, eu sou um cavalheiro, na esmagadora maioria do tempo eu sou um cara. Todas as palavras usadas para me descrever a mim e ao meu mundo são triviais.

Por exemplo, na última ceia, como é sabido, Nosso Senhor Jesus Cristo bebeu por um graal. Nunca me aconteceu. Os meus amigos e eu, quando jantamos, bebemos sempre por copos. Nunca vamos tomar uns graais. São sempre vulgares –e, por vezes, plásticos– copos.

Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

Muito provavelmente, também não terei um solene leito de morte. Como é óbvio, durmo numa cama. Devo morrer lá. Outro exemplo: nos livros, as personagens retiram-se com muita frequência para os seus aposentos. Não é o meu caso. Eu vou para o meu quarto.

Quando os meus pais (quando eu era pequeno), ou a minha mulher (agora) me põem de castigo, é para o quarto que me mandam.

Sucede que as palavras determinam a qualidade das coisas. Às vezes vou a um desses novos restaurantes em que os pratos levam dez linhas a descrever. No meu tempo não era assim. Os pratos eram designados por uma palavra só. Feijoada. Vatapá. Moqueca. Hoje, sinto que me falta formação acadêmica para almoçar lascas de bacalhau em azeite de oliva a baixa temperatura sobre cama de purê de grão-de-bico e espinafres baby com redução de balsâmico, alho e ervas finas.

E, quando a comida chega à mesa, descubro sempre que desfrutei mais da descrição do prato do que da sua ingestão. As palavras são mais ricas que a comida, mais suculentas que a comida, mais saborosas que a comida. E, nesse tipo de restaurante, normalmente as palavras são mais que a comida.

O discurso sobre a comida é melhor que a comida, faz a comida melhor do que ela é. Na minha vida isso é impossível. Palavras cruelmente banais descrevem a minha evidente banalidade. Não hei de falecer no meu leito de morte após uma noite de graais. Vou morrer na cama depois de ter estado nos copos. E já será uma sorte.


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