Folha de S. Paulo


Moscas: subsídios para um estudo

Augusto Monterroso escreveu: "Há três temas: o amor, a morte e as moscas". Vários autores têm se dedicado a pensar sobre os dois primeiros, mas poucos se aventuram a refletir sobre moscas. Felizmente para os leitores da Folha, eu tenho muito tempo livre. E empreendi um plano de estudos sobre moscas do qual gostaria de lhes dar conta, nesta introdução fatalmente breve e incompleta.

Em determinado momento da criação, seja quem for que concebeu o mundo (Deus, para os crentes; a natureza, para os panteístas; Eusébio da Silva Ferreira, para mim) teve um pensamento parecido com este: "Isto está bonito: as estrelas, o mar, as montanhas, as árvores. Só falta uma coisa: moscas".

Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

As moscas não foram criadas de ânimo leve. Quem as inventou sabia o que estava a fazer. Dotou-as de um sofisticadíssimo sistema de defesa que torna quase impossível apanhá-las. De quem é que o leitor acha que o Criador gosta mais: de si, que muitas vezes não consegue desviar-se de inimigos nem mesmo quando estão à sua frente; ou de uma mosca, que é capaz de se esquivar de ameaças vindas de todo o lado?

Sobre qual destes animais –a mosca e o ser humano– lhe parece que Deus pensou: "Há que investir forte na segurança desta preciosa criatura para tentar protegê-la de todo e qualquer ataque"?

Provavelmente por despeito, o mesmíssimo despeito de Caim, damos à mosca tratamento igual ao que reservamos para os piores criminosos: a eletrocussão. Somos cada vez mais sensíveis ao sofrimento dos animais, mas ninguém chora uma lágrima quando aqueles aparelhos de lâmpadas roxas fritam uma mosca.

Dizem que, durante as gravações do filme "Em Busca do Ouro", Chaplin enfureceu-se de tal modo com uma mosca que parou a filmagem e começou a persegui-la com um mata-moscas. A certa altura, a mosca pousou numa mesa e Chaplin aproximou-se, o mata-moscas em riste. E então parou e pousou o mata-moscas. "Que foi?", perguntaram-lhe. "Era outra mosca", respondeu.

Tenho pensado muito nessa história. Como disse acima, sou bastante desocupado. Creio que ninguém desperdiçaria assim a oportunidade de matar uma mosca, nem mesmo Chaplin, nem mesmo para fazer aquela excelente piada. Mas depois ocorreu-me: as moscas são supérfluas, irritantes e fascinadas por tudo o que é podre. É a descrição perfeita de um humorista. Na verdade, somos almas gêmeas. Aquilo era solidariedade profissional.


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