Folha de S. Paulo


Amor e batatas

Os poetas têm falado muito sobre amor, pouco sobre batatas, e nada sobre a relação entre o amor e as batatas. É muito triste que tenha de ser eu a preencher as lacunas que a grande literatura vai deixando.

Talvez o problema seja meu: na minha vida, o amor manifestou-se menos sob a forma de grandes gestos e mais sob a forma de batatas. Os poetas cantam beijos loucos, gritos roucos, lágrimas, ânsias, despedidas, traições, ausências –mas às batatas não dedicam nem um epigrama.

É o seguinte: quando eu era pequeno, a minha avó fazia o almoço muito antes da hora, para que nada faltasse. Ela não tinha uma inclinação natural para beijar ou abraçar, mas fazia outras coisas.

Quando o ônibus do colégio me vinha buscar ela ficava a olhar, à janela, até eu dar a curva. E à tarde, quando o ônibus me trazia, ela já estava na mesma janela, à espera.

Eu tinha seis ou sete anos e ficava com a sensação de que ela ficara ali o dia todo, com a vida suspensa. Hoje sou adulto e a razão diz-me que não era assim –mas o coração continua a não ter a certeza.

No fim de semana, muito antes da hora do almoço, ela fritava batatas, punha num prato, e depois cobria com a tampa de uma panela. O vapor condensava-se no interior da tampa e depois a umidade chovia sobre as batatas. Por isso, as batatas ficavam moles.

Na casa da minha avó, nunca comi batatas que não fossem moles. Quando hoje me põem no prato batatas estaladiças eu penso: essa pessoa sabe fritar batatas, mas ela não me ama. Não fez as batatas com aquela antecedência. Arriscou que as batatas não estivessem prontas quando eu quisesse almoçar.

Batatas estaladiças, fica o leitor avisado, são cruéis. Têm arestas aguçadas que ferem o céu da boca, e estão muito conscientes do seu próprio mérito, reluzentes de óleo. As batatas moles, tubérculos humildes e meigos, suportam com paciência a aflição amorosa que as tornou moles, e a sua indolência morna tranquiliza quem estiver nervoso.

Penso muitas vezes naquele momento, no fim do "Cidadão Kane", em que ele, mesmo antes de morrer, diz "Rosebud", o nome de um trenó que tinha quando era criança. Eu, muito provavelmente, direi: "batatas moles".

Luiza Pannunzio/Luiza Pannuncio/Editoria de Arte/Folhapress
Luiza de 23. de Jun de 2017

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