Folha de S. Paulo


Rocinante x BMW Z4: um teste

Quando os 40 anos chegaram, fiz uma profunda reflexão sobre o que tinha sido a minha vida até aí, o que ela poderia vir a ser daquele ponto em diante –e depois fui comprar um conversível.

A aquisição de veículos desportivos durante a meia-idade é uma tradição injustamente escarnecida.

Outras culturas têm costumes e ritos de passagem bem mais extravagantes e são olhadas com curiosidade respeitosa. Mas, se um homem ocidental, após avaliação madura do seu lugar no universo, decide que dirigir um carro sem teto é a melhor maneira de mitigar o sentimento de que nunca mais voltará a ser jovem, dá por si imediatamente numa posição de inferioridade ética e intelectual.

Na verdade, o conversível não é a única opção clássica do homem que se aflige com a aproximação da idade avançada.

Luiza Pannuzio/Folhapress
Ilustração de Luiza Pannuzio para a coluna de Ricardo Araújo Pereira do dia 16.jun.2017.

Há também o envolvimento mais ou menos afetivo com uma loira 20 anos mais nova. Consultei minha mulher e ela disse que preferia que eu optasse pela loira, por ser a escolha mais barata. Minha mulher não faz ideia de quanto custa uma loira. Portanto comprei o conversível.

É estranho que as pessoas se comovam quando veem Dom Quixote montado no Rocinante e riam quando veem um homem de 40 anos dirigindo um conversível.

É estranho porque estão olhando para a mesma coisa. O mesmo desespero com um tempo que já não volta, a mesma inadaptação a um mundo impiedoso, a mesma falta de cabelo.

Tanto Dom Quixote como o homem de 40 anos são o que querem ser apenas na sua imaginação: o primeiro é cavaleiro andante, o segundo é jovem; o primeiro é um cavaleiro como já não há, o segundo é um jovem como nunca houve.

Carro de jovem não é um conversível novo, é um utilitário de segunda mão a cheirar a vestiário.

Por isso, da próxima vez que o leitor vir um homem de 40 anos saindo de um conversível, abrace-o, diga-lhe ao ouvido que o compreende, que está do lado dele contra a crueldade do tempo.

Essa é a atitude correta e humana a tomar –sobretudo se o leitor for uma loira 20 anos mais nova.


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