Folha de S. Paulo


Htide Faip é o meu nome

Edith Piaf declarou famosamente que não se arrependia de nada. Que sorte. Eu sou o seu rigoroso inverso: arrependo-me de tudo. Isto que vou fazendo não é exatamente viver. É o rascunho de uma vida. Precisava de outra para passar tudo a limpo e comportar-me como deve ser.

O meu epitáfio será, provavelmente: "Aqui jaz Ricardo Araújo Pereira, com a mão na testa". É isso que vou fazer, parece-me, mesmo antes de morrer. Levar a mão à testa e dizer, desconsolado: "Ah. Então era assim que devia ter vivido". Devia ter feito muitas coisas que não fiz e não devia ter feito a maior parte das coisas que fiz.

Os franceses têm uma expressão: "L'esprit d'escalier", o espírito da escada. Serve para designar aquela resposta brilhante da qual a gente se lembra quando já é tarde demais. O orador abandona a tribuna e, no momento em que já vai descendo a escada, ocorre-lhe o que, de fato, deveria ter dito.

Eu terei o espírito da escada aplicado à vida: o espírito da tumba. Suspeito que só saberei viver depois de ter vivido. Só terei espírito quando já for um espírito.

Até esse momento, em que tudo fará sentido por apenas um segundo, não tenho outro remédio senão ir-me trapaceando. Tenho algum prazer em enganar-me a mim mesmo. Não tem problema, eu mereço.

Por exemplo, o leitor conhece aquela música do Tom Jobim, "A Felicidade"? O Vinicius escreve: "Tristeza não tem fim / Felicidade sim." Todo o mundo pensa que ele está a dizer que a tristeza não acaba, ao passo que a felicidade é breve e finita. Todo o mundo pensa isso, e tem razão.

Mas eu tenho a capacidade de me convencer de que ele diz outra coisa: tristeza não tem fim, ou seja, não tem objetivo, finalidade. Não serve para nada. Mas felicidade sim. A gente tem uma utilidade para ela. A tristeza é inútil, só a felicidade tem préstimo. É outra forma de interpretar o poema –e a vida. E faz sentido, especialmente se já tivermos bebido alguma coisa.

Um poeta português chamado António Gedeão disse: "Sou amador da existência, / Não chego a profissional".

Eu também não. Ninguém pagaria para me ver viver. Não sei bem o que estou fazendo aqui. É um espetáculo desinteressante que não edifica ninguém. Arrependo-me de tudo –incluindo este arrependimento.

Luiza Pannunzio/Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress
Luiza de 09.jun.2017.

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