Folha de S. Paulo


A autoajuda me autoprejudica

A filosofia oriental que valoriza o silêncio e a quietude não tem, para mim, nada de exótico, uma vez que foi nesse ambiente cultural que cresci. Creio que minha avó era a única budista mahayana de São Martinho de Coura. Na verdade, ela não sabia que o era, mas evidentemente partilhava aqueles valores. As frases que mais ouvi na infância foram "Está sossegado um minuto, por amor de Deus" e "Ó, Ricardo, cala-te". Está ali o amor pelo silêncio e o elogio da quietude com uma intensidade da qual a maior parte dos gurus não é capaz.

Mas creio que a razão pela qual minha avó foi a pessoa mais importante da minha vida é esta: ela era uma espécie de reverso dos livros de autoajuda. Em vez de "ama-te", propunha: "sê impiedoso contigo". Não com essas palavras. Tinha a segunda série e não era dada a máximas. Mas foi a dureza dela que me ensinou uma coisa preciosa que, provavelmente, horroriza todos os profissionais da saúde mental: desvalorizar os meus sentimentos. Primeiro, por serem sentimentos; segundo, por serem meus. Primeiro, porque a maior parte dos sentimentos goza de um prestígio que não merece; segundo, porque a minha importância é bastante relativa.

Luiza Pannunzio/Folhapress
Ilustração Ricardo Araújo Pereira de 19.mai.2017

Esse estratagema emocional afeiçoou-se muito bem ao meu caráter. Um dia hei-de escrever um elogio do recalcamento, cuja má reputação não compreendo. Não consegui muito na vida, mas devo tudo o que obtive a uma autoestima baixa. Quem se tem em pouca conta esforça-se mais, desconfia de si mesmo, não perde de vista a sua insignificância. O melhor modo de não sermos ridículos é mantermos presente que somos ridículos.

Normalmente, é nesta altura da conversa que sou acusado de insensibilidade. O que se passa é o contrário, acho eu. Acontece que não sou suficientemente insensível para aceitar os conselhos que costumam vir escritos nos livros de autoajuda. Acho a ordem "ama-te" grotesca. Estou convencido de que isto do amor não se decreta. Desse ponto de vista, as sugestões "ama o sr. Teixeira da papelaria" e "ama-te" parecem-me igualmente absurdas. Mesmo que uma pessoa tenha razões para se amar, creio que a boa educação ditaria que procurasse contrariar esse impulso sórdido.

Todas as cartas de amor são ridículas, já se sabe. As mais ridículas de todas são as que eu escreveria para mim mesmo, se minha avó não me tivesse dotado dessa característica tão higiênica, decente e fundamental num mundo civilizado: a vergonha.


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