Folha de S. Paulo


Ivanildo Fiodorovitch Karamázov

Luiza Pannunzio/Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress
Luiza de 21 de abril de 2017

Ivanildo desconfiou logo que se encontrava numa paródia. Não tinha memória de existir antes de 21 de abril de 2017 e agora estava ali, numa página da Folha, mesmo por cima dos quadrinhos. Era uma paródia de certeza. E a intenção do autor, aliás, era clara: imaginar como seria um Ivan Karamázov brasileiro.

Mas Ivanildo olhou para si mesmo, sentado numa esplanada de Ipanema, de calções e chinelo no dedo, e suspeitou que aquela era uma paródia escrita por um daqueles estrangeiros para os quais o brasileiro é sempre um carioca –ou, mais precisamente, uma caricatura de carioca, uma espécie de malandro benigno que vive na praia, entre o surf, as garotas e o chope.

Ivanildo indignou-se: além de ser protagonista de uma paródia, era um clichê. Nesse momento, prometeu fazer tudo para contrariar o autor da paródia –que, ao que tudo indicava, era um ignorante. Tinha um conhecimento muito rudimentar da personagem de Dostoiévski e estava apenas empenhado em demonstrar, para efeitos cômicos, que o Rio de Janeiro, aqui uma metonímia do Brasil, era incompatível com uma determinada forma de ser, atormentada por dúvidas sobre a existência de Deus, e pela dolorosa contemplação do cruel espectáculo do mundo.

Não, Ivanildo Karamázov não iria participar nessa farsa. Era um racionalista e depositava uma confiança firme em suas intuições a priori. Questionava a obra de Deus, recusava tomar parte num mundo erigido sobre o sofrimento de inocentes, prometia remeter-se a um isolamento que tornasse clara a sua rejeição veemente dos outros, dos prazeres mundanos, da vida como ela estava organizada e"¦ Nesse momento, passaram duas garotas e sorriram para ele. Ivanildo olhou ao redor e constatou que ninguém estava a observá-lo, tirando os dois ou três leitores da Folha que tinham aguentado até ao último parágrafo. Por isso mesmo, não deviam ser pessoas de grande discernimento.

Levantou-se e foi atrás das moças a caminho de Ipanema, com a prancha debaixo do braço. Sentiu algum desprezo por si próprio, por ceder à vontade do autor da paródia, mas passou-lhe depressa, porque entretanto já estava na praia, conversando com as garotas em clima de alegria, igualdade e respeito (Ivanildo tinha a sorte de não pertencer à geração de José Mayer), tomando um chope e vendo o sol a pôr-se atrás do morro Dois Irmãos.


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