Folha de S. Paulo


Eu, pecador, me congratulo

Luiza Pannunzio/Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress
Luiza Pannunzio de 14 de abril 2017

Dizem que o poeta português António Botto ia pela rua de braço dado com um marujo, a caminho de casa. Fernando Pessoa cruzou com o casal e lastimou: "Ó António...Na Sexta-feira Santa?" Botto justificou imediatamente: "Marinheiro é peixe."

Uma vez que não existe pecado do lado de baixo do Equador, talvez o público brasileiro não entenda todo o alcance desta história. Na qualidade de habitante do hemisfério norte, e velho apreciador de pecados, tenho todo o gosto em explicar aos meus irmãos o que o pecado é.

Vamos examinar sobretudo os sete pecados mortais, assim chamados porque são, de fato, uma delícia. Tal como, após uma refeição, dizemos "esta sobremesa é de morrer", também destes pecados afirmamos que são mortais. Como o episódio relatado acima demonstra, pecar requer engenho para executar e imaginação para legitimar. Não é qualquer babaca que peca. É difícil pecar sem querer, ao passo que as virtudes podem ser involuntárias. Eu, por exemplo, passei toda a adolescência sendo casto, mas não por minha vontade.

Os teólogos, por vício de profissão, têm ignorado as vantagens do pecado, a maior das quais é esta: os pecados impedem de pecar. Indico o meu caso concreto: o meu pecado favorito é a luxúria. No entanto, não pratico tanto quanto gostaria porque também sou preguiçoso.

Um pecado tem o efeito higiênico de anular o outro. Uma pessoa muito vaidosa, que motivo tem para invejar os outros? Haverá maior antídoto para a preguiça do que a inquietação do ganancioso? Ao contrário, a virtude contém a semente do pecado. Tenho observado que, quem ajuda uma pessoa, em breve deseja ajudar outra, e outra, e outra ainda. Essa feia ganância caritativa é o resultado da vida virtuosa.

Há ainda outro problema que os doutores da igreja não ajudam a resolver: o pecador está frequentemente encurralado entre dois deveres contraditórios que o paralisam. Por um lado, dizem-lhe que o ócio é mau; por outro, o negócio (que, etimologicamente, significa "negação do ócio") também levanta problemas morais.

O ser humano está, assim, condenado a pecar: seja pela preguiça ou pela ganância. A solução, como é evidente, é fazer negócios que não pareçam grandes negócios. Trata-se de movimentar o dinheiro, para espantar o ócio, mas tendo ao mesmo tempo a decência de, por pudor, declarar um valor menor, para esconjurar a ganância. Foi precisamente para isso que Deus inventou o caixa dois.


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