Folha de S. Paulo


Meninos perdidos

Em seu projeto editorial, a Folha avalia que, "em meio à balbúrdia informativa, a utilidade dos jornais crescerá se eles conseguirem não apenas organizar a informação (...), como também torná-la mais compreensível em seus nexos e articulações".

Prevê ainda que "o jornalismo terá de fazer frente a uma exigência qualitativa muito superior à do passado, refinando sua capacidade de selecionar, didatizar e analisar".
Dessa memória do documento divulgado há pouco mais de um ano, salto para a reportagem "Fome de pai deixa meninos perdidos", publicada no domingo passado.
Ela é um contra-exemplo rematado do aprofundamento interpretativo pregado pelo jornal.

Sua tese é a de que "mudanças na família brasileira com o ingresso cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho e a consequente confusão dos homens em relação à sua função na criação dos filhos estão gerando condições potencialmente destrutivas para o desenvolvimento das crianças".

A mãe, dizia o texto, virou "uma espécie de 'mulher-maravilha' que trabalha, administra a casa e cuida dos filhos, e o pai, ao perder a condição de provedor exclusivo, ora compensa isso trabalhando mais, ora simplesmente se afastando da família".

A essa idéia central foram agregadas declarações de alguns psicólogos, citações de um livro "que tem feito sucesso nos EUA" e, no melhor estilo de um certo tipo de cobertura de costumes praticado na Folha, histórias paralelas que pouco ou nenhuma relação têm com a principal ("Escolas ensinam educação matrimonial", por exemplo).

Antes que me chamem de insensível, quero dizer que atribuo, sim, importância ao tema da reportagem.
Talvez por isso me incomode vê-lo tratado de forma enviesada e redutora.

É como se o fato de colocar em suas páginas um assunto de elevado interesse para o leitor a criação dos filhos eximisse a Folha da obrigação de ser rigorosa.
O jornal apresenta como tendência algo que ele não tem elementos suficientes para caracterizar como tal.
Falta de limites dos alunos nas escolas, aumento da delinquência juvenil, adolescentes nos consultórios de terapeutas _tudo isso foi creditado ao fato de que "a figura do pai está se tornando cada vez mais ausente".
Está? É bem possível que sim, especialmente em determinados segmentos da pirâmide social, mas, para início de conversa, o jornal não se preocupou em fornecer dados que corroborem sua premissa.
A única providência nesse sentido foi sacar de uma pesquisa do Datafolha números mostrando "que o pai atualmente tem menos importância na família do que a mãe".
Segundo o referido levantamento, um trabalho extensivo sobre a família brasileira cujos resultados foram publicados em setembro, 74% dos entrevistados consideram a mãe "muito importante", contra 66% que têm a mesma avaliação a respeito do pai.

Sinto, mas esses dois percentuais não confirmam o alegado declínio da figura paterna, até porque não são confrontados com dados mais antigos.
"Fala-se da distância emocional, mas ela não é novidade", escreveu uma leitora à ombudsman. "Essa foi, historicamente, uma característica do papel do pai".
A avaliação, embora não esgote o assunto, contribui para mostrar que ele é mais complexo do que a Folha deu a entender.

"A dificuldade atual em obter e manter o emprego", seguia a reportagem, "torna-se um complicador adicional" para o pai. Não é explicado por que a mãe não seria afetada pelo mesmo problema.
"O homem não é mais, necessariamente, quem põe dinheiro em casa." Certo. Mas em que percentual das famílias isso ocorre? A reportagem não deu nenhuma pista.

Continua a mesma leitora: "É artifício retórico dos mais baixos tornar saliente um fenômeno estatisticamente insignificante, que é a família em que a mãe ganha mais do que o pai".
Uma outra, em carta publicada no "Painel do Leitor", criticou o jornal por não "ressaltar que a qualidade da atenção dada aos filhos, seja pelo pai, seja pela mãe, é muito mais importante do que a característica física familiar".

O protesto dessa leitora, separada há oito anos e mãe de uma adolescente de 15, chama a atenção para um outro aspecto do problema.

Além do descompromisso com a apresentação de dados que sustentem suas generalizações, o jornal tem tendência a aderir a análises que nada fazem além de entronizar o senso comum.
Algo está errado se o que a Folha tem a dizer a respeito das transformações da família é basicamente um resmungo sobre seu "potencial destrutivo para o desenvolvimento das crianças".
O caso dos "meninos perdidos" não é isolado.

Em maio passado, por exemplo, o jornal constatou a "explosão" de sexo e gravidez entre adolescentes. Os números apresentados permitiam falar, na melhor das hipóteses, em aumento.
Pior do que o exagero do título, no entanto, foi a explicação oferecida para o fenômeno. Em resumo, concluiu-se que a culpa é de Carla Perez, pois a "imitação da TV leva as crianças ao sexo".
Há dez dias, a Ilustrada informou em sua capa que a "TV brasileira exibe 20 crimes por hora de desenho".

Quadro com os resultados de um mapeamento da ONU em emissoras abertas descia a detalhes como "motivos do crime" ("psicológicos, financeiros, político-ideológicos e amorosos") e "consequências físicas" ("hematomas ou ferimentos, perda de patrimônio, danos materiais e morte").
Números em profusão.

Questionamento sobre a suposta relação direta entre desenhos e comportamentos anti-sociais, quase nenhum.
Para completar, confira os programas escolhidos para ilustrar a reportagem: "Tom e Jerry", "As Aventuras de Tin-Tin", "Johnny Quest", "Os Flintstones" e "Frajola e Piu-Piu" (porque "o gato quer devorar o passarinho em todo episódio"). De fato, influências deletérias.

A me guiar pelo jornal, devo chegar em casa e esconder o vídeo da Branca de Neve, para evitar que meu filho tenha idéias ao ver o caçador ameaçando a princesa com uma faca.
Que fique claro: não subestimo os desafios impostos por novas formas de organização familiar, o problema da gravidez precoce ou a discussão a respeito do impacto da TV sobre as crianças.
Mas são temas que vêm recebendo, por parte da Folha, um tratamento raso como piscina infantil. É o avesso do que está escrito no projeto editorial.


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