Folha de S. Paulo


Mil vezes o mesmo

Podemos definir como "hipervalorização de um evento de importância relativa". Mas, em português claro, o que foi feito na cobertura das eleições na Câmara e no Senado chama-se encher linguiça. E ninguém o fez tanto quanto a Folha.

Foram semanas e semanas de reciclagem dos mesmos títulos, informações e análises, além de esforço brutal para injetar suspense em algo que terminou, na quarta-feira passada, exatamente como há muito se esperava: PSDB (Aécio Neves) vitorioso na Câmara, PMDB (Jader Barbalho) no Senado e PFL (Antonio Carlos Magalhães em especial) derrotado.

Não se faz jornal sem uma dose de redundância, mas neste caso faltou limite. Não satisfeita em se repetir de um dia para outro, a Folha produziu edições que traziam idêntica informação em textos diferentes, quando não relatada mais de uma vez dentro da mesma matéria.

Na véspera da eleição, foram usados simultaneamente o "Painel" e uma reportagem destacada em cabeça de página para prever que o PFL disputaria o Senado com um nome escolhido de seus próprios quadros, o que acabou por não acontecer.

No mesmo dia, a abertura de um texto sobre a repercussão de gravações divulgadas pela revista "Veja" registrava que "a fita com neopeemedebistas sugerindo vantagens econômicas para entrar no partido deu (a Fernando Henrique Cardoso) mais motivos para manter a neutralidade oficial".

Dois parágrafos à frente estava escrito que "para o governo, o acirramento da disputa, cujo último lance foi a gravação mostrando deputados sugerindo que trataram de vantagens econômicas para trocar o PFL pelo PMDB, serve de pretexto para afastar FHC ainda mais das batalhas entre o PFL e a aliança PMDB-PSDB".

No dia seguinte, o jornal lembrou que Aécio e Jader contavam "com o apoio velado do presidente". Linhas adiante, cuidou de reforçar que FHC trabalhava, "nos bastidores, a favor de Jader e Aécio".

Sempre é possível creditar tais deslizes à correria do fechamento. Na escala em que ocorreram, no entanto, são sintoma de falta do que dizer. De janeiro para cá, quem se deu ao trabalho de ler esse noticiário em detalhes pôde constatar que o volume real de informação caberia, com folga, em metade do espaço.

"PFL tenta adiar eleição; PMDB quer afastar ACM." Feita na esteira da reportagem de "Veja", a manchete de segunda-feira passada é exemplo de aposta na qual nem o jornal acredita.

O "Painel" do mesmo dia avisava que a manobra pefelista não daria em nada. A do PMDB já havia sido condenada ao fracasso em edição anterior.

"FHC favorece candidatura de Jader." O truque da manchete de 6 de fevereiro é outro: dar aparência de revelação de bastidores a algo que não causa surpresa a ninguém.

A menos que o jornal imagine que presidentes não se envolvam em eleições no Congresso, ou que o façam às claras, ou que a opção Jader não tenha lógica do ponto de vista do Planalto.

Para esticar uma história, nada como acenar com a possibilidade de reviravoltas ou afetar complexidade.

Reviravolta não houve. Mais do que simples precaução, os sucessivos alertas de que "em política tudo pode acontecer" soaram como recurso de autor de novela para segurar a audiência.

Quanto à complexidade, muito foi escrito para explicar os erros de ACM, a esperteza de Jader e a estratégia de FHC. Didatismo é sempre bem-vindo, mas tamanha insistência faz supor que as motivações das partes em conflito seriam mais difíceis de entender do que as pesquisas sobre o genoma.

Xadrez é o jogo que os analistas costumam usar como imagem para descrever os movimentos dos partidos que apóiam o governo. Pelo que se viu nos últimos meses, seria mais adequado falar em truco.

A eleição teve sua importância. O tiroteio da campanha serviu para desgastar um pouco mais o Congresso. O resultado modificou um tanto a divisão de espaço dentro da base aliada e poderá influir sobre a escolha do candidato do governo à Presidência.

Tudo isso merece atenção da Folha, não obstante o desinteresse da maioria das pessoas. Mas há diferença entre dar atenção e agarrar-se ao assunto como se não houvesse outro tão relevante.

Assim como relatar o descontentamento do PFL não é o mesmo que transmitir a falsa impressão de um rompimento iminente.

Título principal de Brasil no dia seguinte à votação: "Jader e Aécio vencem PFL; FHC tenta manter aliança". Drama em demasia. Descontada a imprevisibilidade de ACM, não há sinal de que os pefelistas pretendam deixar o condomínio.

Mesmo no que diz respeito a 2002, o jornal exagera no tratamento dado às perspectivas abertas para José Serra, ora beneficiado pela proximidade com o PMDB.

O crescimento de suas chances é notícia, sem dúvida, mas não custa lembrar que há pouco tempo Tasso Jereissati era alvo de entusiasmo igual ou maior, porque padrinho melhor do que o seu (Mário Covas) supostamente não poderia existir.

Nada garante que o embalo de Serra será mais duradouro que o de Tasso, agora pintado como o patinho feio dos pré-candidatos governistas em razão da derrota de seu outro padrinho (ACM).

A ciranda mostra que o quadro ainda pode mudar muitas vezes, eventualmente com outros nomes. É preciso registrar as novidades, mas não sem colocá-las em perspectiva.

O problema das edições superdimensionadas e repetitivas vem de longe e deveria ser analisado pela Redação.

O atual projeto editorial da Folha, em vigor há mais de três anos, prega o "refinamento da capacidade de selecionar, didatizar e analisar" como forma de tornar a informação "compreensível em seus nexos e articulações".

Na prática, porém, o jornal ainda não se livrou do vício de medir a qualidade de suas coberturas pela centimetragem dos textos e número de títulos. Auto-engano.

Alunos de jornalismo aprendem que a abertura de uma notícia deve responder a seis perguntas básicas (o quê, quem, onde, quando, como e por quê). Nem sempre a fórmula funciona, mas essa é outra história.

Como observou um colega, boa parte do que foi publicado sobre as eleições do Congresso não resiste a uma sétima pergunta: "e daí"?


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