Folha de S. Paulo


No topo dos erros

Muitas reportagens contêm um erro ou dois, mas a essência do que dizem sobrevive. Em algumas, porém, as falhas são tantas, e tão graves, que o resultado como um todo fica comprometido.

No segundo grupo se inscreve o caderno Top of Mind, feito a partir do levantamento anual do Datafolha que identifica as marcas mais lembradas pelos consumidores em diversas categorias de produtos.

O especial publicado na quinta-feira trouxe, logo na página inicial, um texto de cunho didático intitulado "Entenda como é a pesquisa".

Os jornalistas não devem ter entendido. Dali em diante, simplesmente ignoraram o alerta sobre a "margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos", o que gerou toda sorte de conclusões equivocadas.

A marca apresentada como líder entre as cervejas estava, na verdade, em empate técnico com outras duas.

O mesmo gráfico que desmentia o título permitia ver que o movimento mais expressivo, na comparação com o levantamento de 99, era o da terceira marca, que subiu o bastante para se juntar às demais no topo.

Também nas categorias de tênis, computadores e chocolates, o jornal proclamou vitória de marcas empatadas com concorrentes. No primeiro caso, três dividiam a liderança. No segundo, quatro.

Entre os chocolates, a manchete destacava a "tradição" da marca A. Ao lado, o quadro a exibia estacionada em relação à pesquisa anterior, enquanto indicava para a marca B um cres­ cimento de cinco pontos percentuais.

O contraste mais gritante entre título e números se deu na categoria dos supermercados. A rede anunciada como líder apa­ recia no gráfico atrás de três, embora dentro da margem de erro.

O efeito foi ainda mais constrangedor porque, das marcas citadas, apenas a beneficiada pelo erro publicou anúncio no Top of Mind.

O próprio nome do caderno, extraído do jargão publicitário, indica sua vocação para atender, antes de mais nada, a estratégias comerciais e institucionais do jornal e de anunciantes. Não é ilícito que seja assim.

Mas esse transgênico jornalístico só tem alguma serventia para o chamado leitor comum se consegue extrair da pesquisa dados interessantes sobre a movimentação das marcas no mercado.

Isso só é possível com rigor na leitura dos números e disposição para encontrar neles algo além dos nomes dos "vencedores", duas preocupações que a edição não teve.

Tomando os chocolates como exemplo, basta um pouco de bom senso para perceber que quando a linha de A não se mexe, e a de B sobe de maneira expressiva, geralmente é na segunda que está a notícia.

Na noite de sexta-feira, em resposta a meu questionamento, a Redação reconheceu o fiasco. "A quantidade de erros cometidos no tratamento dos dados comprometeu a divulgação dos resultados do Top of Mind", disse o editor de Dinheiro, Vinicius Torres Freire.

Não faz um mês, ocorreu outra falha primária em apresentação de números do Datafolha. O jornal afirmou que havia crescido a rejeição dos paulistas à privatização do Banespa.

Para chegar a essa conclusão, comparou pesquisas realizadas em universos diferentes _uma apenas na cidade de São Paulo, outra na capital e no interior.

Neste caso, o erro não contaminou todo um caderno. Mas saiu como segundo destaque na Primeira Página. Além do constrangimento, a proximidade dos dois incidentes deveria provocar reflexão sobre os mecanismos encarregados de zelar pela confiabilidade da informação.

Em um jornal, enganos dessa magnitude raramente têm um único autor. São produzidos por um misto de descuido e inércia em várias instâncias de decisão.

O "erramos" do dia seguinte foi puro eufemismo. "O caderno não esclareceu o critério de desempate utilizado pelo Datafolha." Na realidade, nem mencionou tal critério, que consiste na totalidade de citações de determinada marca.

E, mesmo com sua aplicação aos resultados, permanece equivocada a maior parte das conclusões que a Redação tirou ao não levar em conta a margem de erro. Foram minimizadas como "outras incorreções".

Apesar de seus defeitos, a nota desinformou menos do que a matéria publicada no mesmo dia, em Dinheiro, como complemento (seria impossível dar conta de tudo no "erramos").

A pesquisa apresentou diversos erros por causa dos vários empates na primeira colocação, segundo a margem de erro da pesquisa", dizia a abertura desse texto.

Primeiro, um prêmio para quem encontrou sentido na frase. Depois, se o jornal estivesse disposto a ser rigoroso teria extraído daí um novo "erramos".

Nem a pesquisa apresentou erros, nem eles se deveram aos vários empates na primeira colocação. Foram todos cometidos pela Redação ao manipular os números do Datafolha.

Aos olhos do leitor, pior do que uma grande trapalhada é a tentativa de empurrar a responsabilidade para os outros.


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