Folha de S. Paulo


Descaso com o império

Sob o mais longo ciclo de crescimento da história de seu país, os norte-americanos irão às urnas depois de amanhã ameaçando tirar da Casa Branca o partido que a ocupou durante o período de prosperidade, para lá instalar o filho do homem que Bill Clinton derrotou em 1992.

Ainda que a possibilidade não se concretize, pesquisas indicam que o resultado será o mais apertado desde 1960, quando Kennedy bateu Nixon por pouco mais de cem mil votos.

Somadas a peculiaridade dinástica da disputa, a imprevisibilidade do quadro e a influência da única superpotência sobre quase tudo à nossa volta, o que se tem é notícia repleta de aspectos a explorar.

No entanto, basta ir aos arquivos para verificar que a Folha dispensou à atual campanha menos atenção que à de quatro anos atrás, quando o segundo mandato de Clinton era certeza. A informação diminuiu em quantidade e qualidade.

Nos últimos meses, o jornal colecionou omissões em seu noticiário sobre a eleição nos EUA. O conjunto mostra como é possível acompanhar mal um assunto mesmo publicando algo acerca dele quase todos os dias.

Para falar do básico, até ontem a Folha não havia resumido o que se pode esperar de Albert Gore e de George W. Bush em questões como educação, saúde e mais relevante ao Brasil acordos internacionais de comércio. Trouxe apenas referências esparsas no meio dos textos.

Igualmente subestimada foi a informação de que também o Congresso pode mudar de mãos. Assim como os democratas correm risco de perder a Presidência, há chance de os republicanos ficarem sem o controle da Câmara. Em tese, a maioria democrata deixaria a Casa mais protecionista de novo, algo com potenciais consequências para países como o Brasil.

Sempre tão interessado em pesquisas, neste caso o jornal atravessou semanas de previsões desencontradas e de empate técnico (com Bush em ligeira vantagem na reta final) sem fazer uma reportagem que analisasse os números e mostrasse o complicador representado, na metodologia dos levantamentos, pelo voto facultativo.

Descontada a tradução de um artigo do "New York Times", limitou-se a registrar a esmo dados de diferentes institutos.

Outra maneira de deixar o leitor no escuro é atirar-lhe informação sem contexto que permita seu correto entendimento.

É o que o jornal faz quando dedica quase uma página a críticas de Gore a filmes violentos e seus efeitos sobre as crianças sem mostrar o quanto há de jogo de cena no gesto do vice de Clinton, dada a estreita ligação entre o Partido Democrata e a indústria do entretenimento.

Ou quando destaca em título que o "Washington Post" "pede votos" para Gore e o "NYT" "faz campanha" para a candidata ao Senado Hillary Clinton sem esclarecer que manifestar apoio em editorial atitude menos engajada do que sugerem as expressões usadas é rotina na imprensa dos EUA.

Bush "criticou o aborto", afirmou reportagem sobre o primeiro dos três debates entre ele e Gore. Certo, mas faltou explicar que, de olho no voto das mulheres indecisas, o governador do Texas abrandou na TV ("abortos precisam ser mais raros na América") sua posição histórica a respeito do tema (abortos deveriam ser ilegais).

Leitura obtusa das pesquisas levou a Folha a anunciar que, de acordo com elas, Gore havia vencido o primeiro debate, conclusão desmentida por evidências disponíveis na ocasião e por acontecimentos que se seguiram.

A série de omissões e distorções dá idéia de que o jornal teria aderido à tese de que tanto faz quem for eleito nos

Como observou Boris Fausto em artigo recente na Folha, a apreciação só se justifica se "pensarmos em nítidos cortes ideológicos". Por outros critérios, há diferenças sensíveis entre os candidatos. "Se algumas interessam apenas aos norte-americanos, outras dizem respeito a todo o mundo", escreveu o historiador.

A tarefa do jornal é ajudar o leitor a identificar as diferenças por trás da semelhança aparente, bem como as semelhanças que a retórica de campanha busca transformar em diferença.

Em tempo: a ombudsman não tem acesso prévio às reportagens do jornal. É possível que, páginas adiante deste balanço, a antevéspera da eleição seja marcada por uma boa cobertura. Se for assim, tanto melhor. Mas o que foi feito até agora não satisfaz.


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