Folha de S. Paulo


Mundinho fabricado

Leitora da Folha há anos, Luzia Emiko Marimatsu descobriu recentemente o que é ser atingida por uma reportagem do jornal. Descobriu da pior maneira possível, pois a história envolveu seus filhos.

A garota tem 14 anos. O garoto, 16. Foram apresentados como personagens do "mundinho sansei", capa do Folhateen de 6 de novembro.
Segundo o caderno, adolescentes da terceira geração de imigrantes japoneses em São Paulo "andam em grupos fechados e não namoram 'brasileiros'".

À filha de Luzia, primeira dos entrevistados a surgir no texto, foi atribuída a seguinte declaração: "Na nossa turma, a maioria é oriental. Somos fechados. A gente não tem nada contra os 'gaijins', mas é uma questão de afinidade e identificação. Tem alguma coisa que não se encaixa direito".

Parágrafos adiante, depois de outros depoimentos na mesma linha, a reportagem informou que, apesar de não falar japonês, a maioria "costuma entender o que os avós ou os pais falam no idioma".

Em seguida veio a declaração atribuída ao filho de Luzia: "Só sei o básico: os palavrões". As frases de ambos foram repetidas, em letras maiores, no alto de uma das páginas ocupadas pela matéria.

Luzia não reconheceu os filhos no que leu. Recusa-se a aceitar o argumento-padrão de jornalistas nessas situações: o de que adolescentes nem sempre teriam coragem de assumir, diante dos pais, o que dizem longe deles. "Conheço meus filhos o suficiente para saber que jamais falariam o que foi publicado", escreveu ela em carta dirigida à Redação e a mim.

"Até porque em nossa família existe avançado grau de integração entre descendentes e não-descendentes de japoneses. Minha irmã, meu cunhado, primos e uma infinidade de amigos se relacionam, são casados ou namoram com não-descendentes", continuou. "Somos tão brasileiros quanto o repórter da Folha."

Baseada na reconstituição a que se dedicou depois de ler a reportagem, Luzia está convencida de duas coisas:

a) distorcida ou não, a frase colocada na boca de sua filha foi dita por outra entrevistada;

b) a frase associada a seu filho jamais existiu tal como registrada no papel. Em resposta à questão "Você fala palavrões em japonês?", ele teria se limitado a dizer "sei um". Instado a mencioná-lo, teria encerrado o assunto com um "não, tenho vergonha".
Além dos dois questionamentos pontuais, Luzia critica a conduta do repórter ("de posse de nosso telefone, em nenhum momento entrou em contato comigo ou com meu marido") e o resultado geral da matéria, a seu ver pejorativo e capaz de estimular perseguição aos adolescentes entrevistados.

"É um texto que não acrescentou nada aos leitores", concluiu na carta, "mas que teve a propriedade de gerar um tremendo mal-estar entre as partes envolvidas".

Em conversa telefônica comigo, ela disse que, transcorridas duas semanas, a reportagem ainda causa constrangimento a seus filhos no colégio Bandeirantes, onde ambos estudam.

O episódio também serviu para Luzia descobrir que não é fácil obter retratação do jornal.

Diante do protesto, o Folhateen manteve todas as declarações, ainda que nenhuma das entrevistas tenha sido gravada.

O editor do caderno, Paulo César Martin, não vê conteúdo discriminatório na reportagem, que em seu entender retrata "tendência de comportamento de um segmento da população jovem da cidade". "Em cerca de 20 abordagens", relata, "nenhum entrevistado contrariou essa tendência".

Ele considera que o repórter agiu "de maneira responsável", porque "teve o cuidado de telefonar (para a filha de Luzia) a fim de confirmar se tais palavras eram dela" (segundo a mãe, não foi mencionada no telefonema a declaração publicada com destaque).

Por fim, nega que a frase sobre os palavrões tenha sido montada ou induzida.

Ainda que permita evitar um "erramos", a situação de palavra contra palavra não é confortável para o jornal.

Dois problemas são visíveis no incidente. O primeiro diz respeito a equívocos de procedimento.

Nada impede e tudo recomenda que entrevistas desse gênero sejam sempre gravadas (no entanto, ao investigar casos que me são trazidos, fico surpresa com a quantidade de vezes em que essa providência não é tomada).

Além disso, é preciso ter sensibilidade para perceber que expor uma criança ou um adolescente no jornal não é o mesmo que fazê-lo com um parlamentar, um artista ou mesmo uma pessoa sem projeção pública, porém adulta.

Com menores de idade, os cuidados têm de ser redobrados. Dependendo da delicadeza do tema, isso inclui consultar os pais.

O segundo problema, já observado mais de uma vez neste espaço, é a fragilidade comum a muitas das reportagens de "tendência".

Com um punhado de abordagens de rua (que não atrapalhem o lide), o jornal decreta que sanseis "não se misturam" e "preferem namorar entre si". Passa por cima de qualquer evidência em contrário e da impossibilidade de generalizar a partir de tão pouco.

Ainda que sobrevivam duas versões sobre as entrevistas, não há elementos para rebater o diagnóstico geral de Luzia. Rasa, a matéria serviu apenas para difundir preconceito.


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