Folha de S. Paulo


Leilão de ilusões

Quarta-feira, 15 de novembro. A Folha afirmava em manchete que os cinco bancos estrangeiros inicialmente interessados no Banespa tinham desistido de participar do leilão.

Três haviam anunciado essa decisão. "HSBC e Santander, que não se manifestaram oficialmente, também não vão concorrer", informava o texto principal da capa.

Sexta-feira. Sem destaque, o jornal noticiava a entrega ao Banco Central, pelo Santander, de documentos necessários para tomar parte no leilão.
O BC, dizia a reportagem, "negociou para manter na disputa" o Santander, que faria apenas figuração. "Está credenciado, mas sua participação é incerta", pois "recebeu recado" do banco central espanhol "para pular fora". Motivo: "já teria investimentos demais na América Latina".

Segunda-feira, dia do leilão. A capa advertia que, embora o banco tivesse depositado as garantias, havia "dúvida" quanto a seu comparecimento.
Nessa manhã, o Santander arrematou o Banespa por R$ 7,05 bilhões, quase R$ 5 bilhões a mais do que a segunda melhor oferta, feita pelo Unibanco.
Como se vê, para adivinhar o que estava por vir seria preciso ler o noticiário pelo avesso. Em outras palavras, o jornal não tinha a menor idéia do que se passava nos bastidores do negócio do ano.

A desinformação não atingiu apenas a Folha. A revista "Época" naufragou com uma reportagem de capa na qual se relatava que o sumiço de arquivos do Banespa havia assustado definitivamente os bancos estrangeiros.
Na segunda-feira, assustados ficaram o mercado e a imprensa diante do apetite dos espanhóis, reedição do efeito produzido pela Telefónica, dois anos atrás, ao comprar a Telesp.

Entre os diários, a "Gazeta Mercantil" foi a que mais se aproximou da convicção equivocada da Folha. "Madri afasta os espanhóis do Banespa", afirmava em 16 de novembro.

No dia seguinte, também abraçou a idéia de que só o "trabalho de persuasão" do BC havia permitido "segurar" o Santander na disputa. Apenas teve um pouco mais de cautela com a teoria da figuração.

Outros jornais, no entanto, abriram algum espaço para dúvida. O "Estado", mesmo aderindo ao coro do suposto favoritismo de Bradesco e Itaú, apurou que o Santander havia recebido "sinal verde da Espanha".

No domingo, enquanto a reportagem da Folha sobre as chances dos competidores não citava uma única vez o Santander, a do concorrente trazia, ainda que na última linha, frase que não se leu em outro jornal: "Talvez (o banco espanhol) seja uma das grandes surpresas do leilão".

Esta é a história de duas ilusões. A mais evidente é a que foi vendida pelo noticiário: problemas variados teriam feito com que os estrangeiros, sem exceção, perdessem completamente o interesse pelo que o presidente do Banco Central definiu como "a jóia da nossa Coroa".

A outra ilusão é a de que jornalistas sabem tudo ou, pelo menos, muito mais do que o público. No caso, eram bastante conhecidas as intenções de bancários, procuradores e partidos de oposição, mas o jogo dos bancos, em especial o do vencedor, correu longe dos olhos da imprensa.
Para quem tem a atribuição de informar, não é confortável carregar nas costas "uma desinformação de R$ 7 bilhões", como disse um dos leitores que me procuraram. Mas acontece.

O problema mais grave é não reconhecer o erro. Na edição de terça-feira, a Folha noticiou o "surpreendente" resultado da véspera sem dizer que ele jogou no lixo a manchete de 15 de novembro e várias afirmações publicadas depois dela.

Além de não dar satisfação, o jornal concluiu que o Santander havia tomado "no final de semana a decisão de entrar no leilão". Duas observações:

a) não encontrei, fora da Redação da Folha, muita gente disposta a levar a sério a tese de que um negócio de tal vulto teria sido decidido de última hora, como uma ida ao shopping para adiantar compras de Natal.

b) sem o reconhecimento do erro, a apuração do jornal, consistente ou não, soa como tentativa de justificar a manchete.
Com linha semelhante à da Folha até o leilão, a "Gazeta" trouxe depois dele explicação diferente e mais plausível. "A idéia era criar a sensação, mesmo dentro de casa, de que o Santander havia deixado a disputa."

Não sabemos em que andar da casa estava a fonte da Folha. O fato é que a manchete e seus subprodutos contribuíram para o sucesso da estratégia de ataque-surpresa.

O episódio deveria estimular reflexão e alguma humildade por parte dos jornalistas, mas não é certo que isso aconteça.

Que sirva, então, para aumentar a desconfiança do leitor em relação ao que lhe é apresentado como informação de "altas fontes". Sob a aparência de segredo desvendado, às vezes há apenas casca de banana.


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