Folha de S. Paulo


A Nicéa de Luxemburgo

O mundo do futebol lembra um pouco a prefeitura paulistana. Paira sobre ambos a convicção geral de que funcionam na base do "por fora", da ilicitude. O problema é que entre estar convencido e dispor de testemunha vai uma distância. Daí a ter prova documental, outra.

As recentes denúncias contra Wanderley Luxemburgo podem ser resumidas em dois pontos.

O primeiro é que o técnico da seleção brasileira de futebol sonegou pelo menos R$ 1,3 milhão de Imposto de Renda nos últimos seis anos. Disso a Receita Federal não tem dúvida.

Apesar do vulto da cifra e da importância do cargo ocupado pelo sonegador, o fato não parece causar grande comoção. Com poucas exceções, é tratado como algo menos grave do que perder para Chile ou Paraguai.

O segundo ponto é a acusação, feita por uma ex-assessora de Luxemburgo, de que este fez do futebol seu balcão de negócios, ganhando dinheiro com a valorização do passe e a venda de jogadores sob seu comando.

A esse respeito existe o depoimento de Renata Alves, que diz ser também ex-namorada do treinador, o que ele nega. Seja como for, ela desempenha o papel de Nicéa Pitta neste caso, falando cobras e lagartos de Luxemburgo. Não obstante o destaque dado a suas declarações, por enquanto não há elemento que as comprove.

Na sexta-feira, a Folha acrescentou a esse quadro a descrição de uma ciranda.

Sua reportagem mostrou que Luxemburgo é sócio de um empresário (Sérgio Malucelli) que preside um clube da segunda divisão do Paraná (Iraty).

O clube "mantém relações de parceria com os principais agentes de jogadores do país. E esses agentes detêm, sob contrato, algumas estrelas da seleção brasileira, comandada pelo técnico".

Interessante, sem dúvida, pelo encaixe de peças. Mas a manchete do caderno Esporte ("O mundo paralelo de Luxemburgo") padecia do mal que se vê em boa parte dos títulos da imprensa nesta cobertura: dava a impressão de algo maior do que as informações disponíveis permitem concluir.

Que "mundo paralelo"?, perguntei na crítica interna. Se é a relação de Luxemburgo com Sérgio Malucelli, cabe ponderar que esta jamais foi negada pelo técnico, e que a reportagem da Folha, embora reveladora de detalhes dessa e de outras conexões, não chega a mostrar irregularidade nos negócios da dupla.

O que se tem, até o momento, foi dito no título da capa do jornal, menos colorido: a sociedade entrou na mira da Receita.

De maneira geral, a Folha tem se saído bem desde que o caso veio à tona, há quase duas semanas, no jornal "O Dia".

Não fez nada parecido com uma reportagem do "Estado" que simplesmente somou os valores de transações com jogadores da seleção na era Luxemburgo e, em exercício de ilação, apresentou o número como indício contra ele.

Não se trata de desestimular a apuração das denúncias da ex-assessora, como pretende o presidente da CBF. "Quando o Brasil ganhar dois jogos nas eliminatórias da Copa do Mundo, o assunto morre", previu Ricardo Teixeira na reportagem da ciranda.

Vamos conferir depois da partida de hoje à tarde contra a Bolívia. Tomara que a disposição da Folha independa do resultado, e que o jornal não deixe seu trabalho de investigação ser contaminado pelo mais popular dos passatempos nacionais: malhar o técnico de uma seleção que vai mal das pernas.


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