Folha de S. Paulo


Nós e os outros

No primeiro dia, na primeira página, ficou claro que o assassinato de Sandra Gomide por Antônio Pimenta Neves não receberia o tratamento habitualmente dispensado a histórias com os mesmos ingredientes. São ingredientes os perfis do autor e da vítima, o fator passional, os tiros, o haras que levam um crime à capa da Folha.

Não para o alto, como o desastre do submarino. Não em várias colunas, como a roubalheira na obra do fórum. Mas notícia de primeira página, com certeza, fosse Pimenta Neves médico ou engenheiro, diretor de banco ou de empresa.

A dúvida oficial que pairava no domingo passado nas horas posteriores à morte, a polícia ainda o tratava como "principal suspeito" não refreou o jornal em outras ocasiões. Para constatar, basta recorrer ao arquivo ou a simples exercício de memória.

Mas Pimenta Neves, 63, é jornalista. Como foi Sandra, 32. Até matar a ex-namorada, ele dirigia a Redação do "Estado de S. Paulo". Ao longo da carreira, ocupou cargos importantes em vários veículos, entre eles a Folha. A notícia não saiu na capa de segunda.

A reportagem interna conseguiu manter-se equilibrada até o momento de explicar quem era a vítima, quando enveredou para o seguinte:
"Durante seu relacionamento com Pimenta Neves, ela foi promovida e chegou a ser editora de economia da 'Gazeta Mercantil'. Deixou o jornal depois que Pimenta Neves se transferiu para o 'Estado de S. Paulo', há cerca de dois anos."

"Nesse jornal, ele a contratou como repórter especial. Depois ela passou a editora de economia. Há cerca de um mês, ele a demitiu. Pimenta Neves disse a amigos ter provas de que o comportamento profissional da ex-namorada, na função de editora, não era ético."

Logo abaixo, o título do texto dedicado à trajetória profissional do autor do crime dizia: "Pimenta Neves tem currículo notável".

Do contraste, um leitor retirou esta conclusão: "O jornal parece quase desculpá-lo. Afinal, ela era 'desonesta', e ele, 'notável' ".

Como observou uma leitora, "é preciso ter clareza do que se pode fazer com as palavras, e do quanto elas revelam sobre a postura de quem as usa". Assim, cabe perguntar por que a Folha, em vez de dizer que Sandra dormiu com o chefe para ser promovida, não escreveu que o jornalista notável premiou a subordinada por dormir com ele e a demitiu quando ela não quis mais fazê-lo. A reportagem se antecipou a Pimenta Neves e seu advogado na tentativa de desmoralizar a vítima.

Quanto à acusação de desonestidade, referente a reportagens sobre a Vasp, foi publicada sem que o jornal dispusesse de prova. Diante da preocupação em registrar méritos pregressos do assassino, não era demais esperar, em contrapartida, algum cuidado em relação a quem não pode mais se defender. Comparadas as edições de segunda-feira, nem o "Estado" soou tão protetor.

Não que este tenha dado livre curso à história. No entanto, sabendo-se mais na berlinda do que os concorrentes, tratou de seguir uma agenda mínima: menção discreta na capa, nada de adjetivos dentro.

O pacote incluiu biografia de Sandra. Na de Pimenta Neves, o título destacou que ele "dirigiu vários jornais", como a dizer: "poderia ter sido em qualquer um deles".

"Por que a assepsia da cobertura?", indagou outra leitora. Ela se referia à ausência de fotos.

No primeiro dia, a Folha não trouxe nenhuma, o que foge ao padrão para casos dessa natureza. No segundo houve imagem do pai da vítima junto ao caixão, com uma pequena foto de Sandra em destaque. A de Pimenta Neves só veio a sair na quinta-feira.

No aspecto visual, apenas o "Estado" conseguiu ser mais lacônico. Até ontem, não havia publicado foto do assassino nem da vítima.

O zelo faz supor que assistimos ao início de uma nova era, em que apenas criminosos confessos terão a imagem estampada no jornal. Das páginas de política às de esporte, basta folhear para perceber que não é isso.

Ao lado do "Estado", a Folha foi, no decorrer da semana passada, o jornal que mais limitações demonstrou no acompanhamento do caso. Não houve apenas prudência, mas timidez mesmo, não raro acompanhada de viés favorável à defesa.

Declarações de colegas sobre a instabilidade recente do jornalista, o relato de que andava armado, as ameaças feitas a Sandra, o segurança contratado pela família da vítima, o pedido de Pimenta Neves a conhecidos para que não a empregassem: tudo isso saiu primeiro em outros veículos. Até ontem, algumas das informações nem haviam sido recuperadas pela Folha.

Depois do "Estado", ela é talvez a mais próxima de Pimenta Neves, que mantém relações pessoais com vários de seus jornalistas, entre eles o diretor de Redação, Otavio Frias Filho.

Distante da praça paulista, "O Globo" faz a cobertura mais livre de amarras, ao lado da apresentada pelo site "Notícia e Opinião" .

Há quem diga que o jornal do Rio exagera no destaque e usa tom acusatório. As evidências mais fortes, no entanto, vão no sentido contrário, o de que "Estado" e Folha poupam Pimenta Neves.

Há quem diga também que o barulho em torno do caso é coisa de jornalistas, e que ele não desperta o mesmo interesse no chamado "leitor comum".

Seja como for, esta não é uma discussão sobre audiência. O ponto é saber se a imprensa está disposta a submeter os seus ao mesmo rigor com que trata os outros. Pelo retrospecto da semana, a resposta é não.

Certo ou errado, não é hábito do jornal chamar de suspeito alguém que já confessou o crime ao advogado e aos próprios jornalistas.

Não é regra se preocupar com a imagem de alguém a ponto de descartar sua foto em traje de banho, um tanto constrangedora para um homem de muita idade e nenhum forma física.

Também é incomum dizer que a filha do personagem da notícia tem "doença grave", e não câncer, em respeito ao sofrimento da família.

Para os outros, vale o "doa a quem doer". Para "um dos nossos", não é bem assim.


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