Folha de S. Paulo


Vale a pena ver de novo

O jornal tem seus bordões. São pautas periodicamente retiradas do freezer, com pouca ou nenhuma novidade em relação ao aproveitamento anterior. Por vezes fica claro que foram descongeladas apenas devido à ausência de algo consistente para oferecer ao leitor.

Tome-se a capa de Dinheiro de domingo passado. "Sucessão indefinida eleva custo do crédito", afirmou a manchete do caderno.

Ela ressuscita o mote "investidores estrangeiros temem Lula" (e agora também Ciro Gomes, segundo a reportagem), velho conhecido de períodos pré-eleitorais. Que tenha recebido tamanho destaque a mais de dois anos da sucessão é sinal, no mínimo, de falta de assunto.

Vale a pena descer aos detalhes do texto, tão ralo em informação quanto ávido em incorporar o discurso das fontes, no caso, "diretores de instituições financeiras ouvidos pela Folha".

De acordo com o jornal, o custo dos empréstimos no exterior para empresas e bancos do país "passou a incluir o prêmio cobrado por não se saber quem será o próximo presidente do Brasil". A esta altura do campeonato, estranho seria se soubéssemos.

"Por temer que o próximo governo adote política que comprometa o pagamento de dívidas, os investidores pedem juros extras para compensar o risco."

Depois da explicação, a anuência: "O medo não é sem razão. Tanto Luís Inácio Lula da Silva (PT) quanto Ciro Gomes (PPS) já disseram que fariam a reestruturação da dívida se fossem eleitos".

Disseram exatamente o quê? Ambos disseram nos mesmos termos? Quando e em que circunstâncias? E agora, diante do diagnóstico da reportagem, o que disseram?

Sem respostas. A menção terminou aí, seguida da situação de cada um na pesquisa Datafolha de intenção de voto (primeiro e segundo lugares, respectivamente). Nenhum dos dois foi entrevistado.

"Na visão do mercado", prosseguiu o texto, reestruturação da dívida "é quase o mesmo do que calote".

Como observei aqui há uma semana, o fato de "o mercado" ser muita gente e ao mesmo tempo ninguém deixa o jornal à vontade para se eximir de responsabilidade pelo que diz.

Percorri a página em busca de dado concreto sobre os tais juros extras, até que um dos especialistas consultados enterrou minha expectativa.

Segundo ele, "não dá para quantificar esse percentual", embora sua existência seja "visível".

Ou seja, não dá para quantificar, para explicar melhor, para ser específico. Dá, no entanto, para construir uma capa em cima desse pastel de vento.

Se faltou informação, sobraram obviedades. Outro entrevistado compareceu com a avaliação de que "quanto pior a popularidade de FHC, mais alto será o prêmio de risco cobrado pelos investidores estrangeiros". Previu ainda que "se a aceitação pública do governo estiver muito baixa, será difícil para o presidente eleger seu sucessor". Este último palpite a Folha poderia ter colhido tanto em bancos como na arquibancada de São Paulo x Palmeiras ou na platéia do MorumbiFashion.

Em pouco mais de dois anos como ombudsman, aprendi que eleição costuma ser tema difícil de discutir com leitores.

Alguns simplesmente rejeitam que o jornal publique notícias desagradáveis sobre o candidato ou partido de sua preferência, assim como torcedores de futebol não querem ouvir falar na venda de ídolos ou na perda de patrocínio do clube.

Um dos leitores que me procuraram na semana passada, simpatizante de Lula, estava menos preocupado com a conclusão geral da reportagem do que com o fato de Ciro Gomes ter sido equiparado ao PT como alvo da desconfiança externa.

Vários, no entanto, tocaram no verdadeiro problema: a inconsistência do que foi publicado. Eles não ignoram que os investidores estrangeiros têm outras preferências. Apenas perguntam o que a Folha tem a dizer de novo a esse respeito.

A julgar pelo material de domingo passado, quase nada. Então que não se faça terrorismo eleitoral, ainda por cima extemporâneo.

A sucessão é em 2002. O jornal bem poderia deixar essa conversa para mais tarde. Se quer tratar dela agora, que o faça com seriedade. O que não pode é ficar brincando de papagaio do "mercado".


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