Folha de S. Paulo


Uma resposta simples

Imagino que a história a seguir tenha passado despercebida pelo leitor que se informa apenas ou preferencialmente por meio do jornal impresso. Deu-se na terça-feira. Em poucas horas de vida, fez barulho no rádio e na Internet, além de causar um princípio de incidente diplomático.

A confusão foi desfeita bem antes do fechamento das edições do dia seguinte. Algumas, como a da Folha, nem chegaram a mencioná-la. Outros diários deram registro periférico.

Tudo nasceu de uma declaração do ministro da Fazenda, que participava, no Rio, de debate sobre o Mercosul. Uma das questões lançadas pelo mediador aos integrantes da mesa dizia respeito à paridade do peso argentino com o dólar norte-americano.

Último a falar, Pedro Malan declarou: "Se a Argentina deve mudar a conversibilidade? Acho que minha resposta é simples: cabe aos argentinos decidir".

Como ministro de outro país, não achava adequado "tecer considerações dessa natureza". Acrescentou a opinião de que regimes cambiais diferentes podem perfeitamente conviver dentro do Mercosul.

Alguns jornalistas na platéia ouviram "sim" no lugar de "simples". A partir daí, nem a água fria das palavras seguintes conseguiu diminuir a excitação diante do título descoberto. Com uma sílaba a menos, a frase anódina virou notícia.

No final da manhã, serviços em tempo real do "Estado" e do "Globo" informavam que o ministro havia defendido o fim do câmbio fixo em um para um na Argentina. Não demorou até que a coisa chegasse ao rádio.

Estava no trânsito quando ouvi a manchete da CBN. Combinava tão pouco com Malan, avesso a declarações de impacto mesmo quando a economia em discussão é a brasileira, que me perguntei se a possível candidatura à Presidência já começara a modificar seu temperamento contido.

A conduta da Folha nessa trapalhada foi peculiar.

A repórter que cobriu o evento para a operação eletrônica do jornal entendeu direito o que disse o ministro. Não existia erro nos dois primeiros boletins, ambos oferecidos no serviço por assinatura.

Um deles relatava que Malan havia destacado a importância da harmonização das estatísticas fiscais de Brasil e Argentina.

No outro, igualmente enfadonho, ele ponderava que ainda não é o momento de pensar em moeda única para o bloco.

Entre aspas, a única referência à conversibilidade: "É possível para um país unir crescimento e melhores condições de vida independentemente do arranjo cambial que escolheu".

Foi no início da tarde que a cobertura desandou. O jornal online da Folha, este um serviço aberto, decidiu bancar o que leu e ouviu em outros veículos.

"Apesar de ressaltar que não queria se intrometer em questões internas do país vizinho, (o ministro) acabou defendendo o fim da paridade", afirmou a "recortagem".

Em resposta ao noticiário, o chanceler argentino mandou Malan passear: "Eu não me atreveria a fazer nenhum tipo de recomendação à política de outros países".

Telefonemas da assessoria do ministro levaram as Redações a conferir e posteriormente rever o que havia sido colocado no ar. Outra série de intervenções restabeleceu o entendimento com a chancelaria.

Não houve tragédia, portanto. Decorridas algumas horas, as autoridades tinham voltado às boas e o público dispunha da informação correta.

Qualquer pessoa se lembrará de episódios em que as consequências do engano foram muito mais sérias e duradouras, tanto para os envolvidos quanto para o leitor.

O interessante nesta comédia de erros é o que revela sobre dois problemas do jornalismo, um antigo e outro recente.

O antigo é a falta de transparência. Dos sites mencionados, apenas o do "Estado" reconheceu o equívoco com todas as letras.

O do "Globo" ficou no meio termo. O novo texto trouxe um "ao contrário da nota anterior", mas o título assumiu ares de notícia: "Malan diz que cabe a ar­ gentinos a escolha do regime cambial".

E a Folha, que tinha tudo para evitar a canoa furada, não apenas embarcou com os dois pés como divulgou a mais tardia (17h22) e dissimulada das retifi­ cações: "Malan nega ter defendido mudança no regime cambial da Argentina".

Coisa nenhuma. Ele simplesmente não defendeu a mudança.

Não ver diferença entre as duas formulações é sinal de leviandade ou de desconhecimento do idioma. Nos jornais de quarta-feira, a mesma história enviesada.

"Frase de Malan confunde platéia", disse o "Globo". Bem, houve quem não tenha se confundido. Para o jornal, a encrenca surgiu de "uma palavra mal pronunciada".

É um ponto de vista. Mas, considerando que ela foi bem entendida por parte dos presentes, seria mais apropriado falar em "palavra mal ouvida", como fez o "Correio Braziliense".

"Malan provoca mal-estar ao falar sobre dolarização", avaliou o "Jornal do Brasil". Por que não atribuir a responsabilidade aos jornalistas?

Dois detalhes merecem registro:

a) não faltavam no local gravadores para tirar a dúvida a limpo;

b) encerrado o debate, houve divisão entre repórteres a respei­ to da frase. Em seguida, o ministro deu entrevista coletiva. Nenhuma pergunta sobre o assunto.

Vários podem ter sido os motivos do silêncio, mas não é absurdo interpretar que havia gente com título pronto e receio de perdê-lo diante de um eventual "recuo" de Malan.

A outra questão iluminada pelo "simples" que virou "sim" não chega a ser nova, mas sem dúvida ganha força com a multiplicação dos serviços de notícias na Internet.

A competição entre os sites e o impacto destes sobre os meios tradicionais contribuem para acirrar o espírito "atire primeiro e pergunte depois". Nesse am­ biente, é raro alguém decidir segurar o que todos estão dando, mesmo quando o bom senso recomenda.

O tempo real parece desculpar a rapinagem e a fragilidade da apuração, porque tudo, em tese, pode desaparecer ou ser melhorado no próximo despacho.

A verdade não-assumida é que, em muitos casos, os outros veículos não são apenas monitorados, e sim tratados como fonte.

Seria tolo supor que o problema nasceu com o jornalismo online, ou ignorar os benefícios que ele trouxe ao leitor. Mas é do interesse do jornal impor padrão de qualidade a esse serviço.

A credibilidade da Folha não está menos em jogo na tela do que no papel. Informar com rapidez não pode ser igual a desinformar.


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