Folha de S. Paulo


Um teste para a reportagem

Há um ano, registrei aqui os resultados de uma pesquisa feita nos EUA para aferir a credibilidade dos jornais, tema de debate na conferência de 1999 da ONO (Organization of News Ombudsmen).

Um novo capítulo dessa história entrou na pauta da reunião mais recente dos ouvidores, realizada na semana passada em Montreal (Canadá). Desta vez foram discutidas as iniciativas tomadas em resposta às conclusões do levantamento.

Em resumo, os números divulgados no ano passado mostram que o público avalia mal os jornais no que diz respeito a quantidade e gravidade de erros, disposição para corrigi-los, sensacionalismo e manipulação do noticiário em benefício de grupos de interesse.

Indicam também um descompasso entre a imagem que os jornalistas têm de seu trabalho e a percepção do público, bem mais crítica.

Assim como a pesquisa, as experiências relatadas em Montreal integram um projeto desenvolvido desde 1997 pela Asne (American Society of Newspaper Editors).

No primeiro momento, ele procurou quantificar e apontar causas do declínio da confiança do leitor. Agora, oito jornais norte-americanos de pequeno e médio porte estão servindo de laboratório para a busca de soluções.
Pelo que foi apresentado no encontro da ONO, há de tudo nesses programas. Alguns parecem investir mais em relações públicas do que no combate às deficiências.

Um jornal da Flórida passou a convidar leitores a examinar provas de suas páginas antes do fechamento, para que eles identifiquem erros e experimentem a pressão de tempo a que os jornalistas são submetidos.
Outro, da Virginia, também decidiu chamar leitores, mas para participar das reuniões de produção e edição.

O mesmo diário instituiu uma seção chamada "O que está na capa", destinada a esclarecer os critérios que determinaram a escolha das notícias da primeira página. O objetivo é desfazer a repetida noção de que só ganha visibilidade "o que vende jornal".

Nos dois primeiros casos, passado o efeito novidade, o interesse em ir à Redação caiu bastante, talvez porque as pessoas tenham mais o que fazer e esperem, compreensivelmente, que jornalistas se encarreguem do jornal.

No terceiro caso aconteceu algo curioso. Os leitores aprovaram a nova seção, mas por achar que se tratava de um resumo das notícias do dia.

Quando o propósito ficou claro, cartas começaram a pedir que as explicações fossem deixadas de lado para dar lugar à síntese, considerada mais útil.

Além da escassez de resultados concretos, esse tipo de iniciativa carrega uma fragilidade de origem. Traz embutida a idéia de que a credibilidade pode ser resgatada por meio da adulação a um leitor cada dia mais arredio, e não por medidas internas que tornem o produto melhor e mais necessário.

Em uma transferência não declarada de responsabilidade, é como se o jornal dissesse ao leitor: "se assim não está bom, então faça do seu jeito".

Nem todas as experiências desenvolvidas dentro do projeto da Asne seguem essa linha. Há vários programas voltados para o aperfeiçoamento do conteúdo.

Alguns diários tomaram as críticas como base para melhorar sua política de reconhecimento de erros. Embora saibam que nada elimina a necessidade de avaliar caso a caso, decidiram estabelecer e divulgar critérios sobre o que deve ser corrigido, na tentativa de evitar notas inúteis e garantir que falhas relevantes não passem em branco.

Pode parecer modesto, mas não custa lembrar que na Folha, onde o "Erramos" é seção há muitos anos, às vezes não encontro argumentos para explicar ao leitor por que determinado erro foi corrigido e outro, de natureza igual ou mais grave, não.

Dos oito casos, o que me pareceu mais interessante foi analisado sem grande entusiasmo pela representante da associação dos editores, sob o argumento de que, a despeito das qualidades do programa, o jornal não o anunciou com suficiente alarde.

Mas, de olho no mérito e não no barulho, vale a pena conferir o questionário para avaliar reportagens elaborado pelo "San Jose Mercury News", diário que circula na região da Califórnia dominada pela indústria de informática.

Simples e relativamente curta, a lista foi montada a partir de deslizes cometidos com frequência. Inclui questões que buscam evitar erros pontuais e outras de natureza mais ampla.

Não há preenchimento de formulários, eletrônicos ou em papel. A idéia é que cada texto, antes de ir para a página, seja submetido a um exame rápido. As perguntas, visíveis ao lado de cada um dos computadores da Redação, são as seguintes:

1. Nomes, cargos e lugares mencionados nesta reportagem foram checados?

2. Números de telefone e endereços eletrônicos fornecidos pelas fontes foram testados?

3. As declarações entre aspas estão precisas e corretamente atribuídas? Elas refletem o que o entrevistado quis dizer?

4. O texto inclui memória do assunto tratado?

5. O lide se sustenta?

6. A reportagem é isenta?

a) Todas as partes interessadas estão identificadas e tiveram oportunidade de se manifestar?

b) A quem a reportagem vai desagradar? Por quê? Algum problema nisso?

c) A reportagem toma partido? Faz juízos de valor? Agradará demais a alguém?

7. Que informação está faltando nesta história?

Em teoria, o questionário deve ser aplicado por repórter e editor em conjunto. Na prática, nem no Vale do Silício o fechamento de um jornal diário permite tanta conversa.

Segundo o editor-executivo, David Yarnold, a rotina em dupla costuma ser seguida nas principais reportagens do dia. Nas demais, o repórter cuida da checagem sozinho.

Yarnold acha que, mesmo quando nem para isso sobra tempo, a simples presença das questões durante a elaboração do texto contribui para torná-lo mais completo e equilibrado.

No começo, ele diz, houve ceticismo. Para que o método, ponderavam alguns, se essas perguntas devem ser segunda natureza para qualquer jornalista? Porque no dia-a-dia não funciona dessa maneira, responde o editor-executivo.

O questionário não fará a mágica de reverter a chamada crise de credibilidade e muito menos o declínio da leitura de jornais nos EUA, pano de fundo dos esforços empreendidos pela Asne.

Mas aplicá-lo é um exercício interessante. Ele se preocupa com noções básicas. O desrespeito a elas é responsável por boa parte dos absurdos publicados.

Sem pretender fazer pouco dos erros pontuais, minhas perguntas favoritas são a 5 e a 6, que tratam, respectivamente, de consistência e isenção.

O leitor pode fazer o teste, na Folha e em outros jornais, e depois me contar suas conclusões. Aposto que ficará impressionado com a quantidade e a proeminência das reportagens reprovadas.


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