Folha de S. Paulo


As duas faces de Elián

As duas imagens desta coluna resumiram para milhões de pessoas, no final de semana passado, o desenlace da saga de Elián González, há meses em posição de destaque no noticiário dos EUA e por tabela de quase todo o mundo.

Se é que algum leitor teve como não saber, trata-se do menino encontrado em novembro na costa da Flórida, agarrado, assim como dois adultos, a destroços de uma embarcação vinda de Cuba. A mãe, o padrasto e outras oito pessoas morreram na travessia.

Elián, 6, foi acolhido por familiares que vivem em Miami. Desde então, estes se recusavam a devolvê-lo ao pai. No sábado, agentes do Serviço de Imigração pegaram a criança e a levaram ao encontro de Juan Miguel González em uma base aérea perto de Washington.

A primeira foto foi feita por um free-lancer, durante a operação, para a agência "Associated Press". Ele estava na casa autorizado pelos parentes de Elián, com os quais desenvolveu um relacionamento ao longo da extensa cobertura.

A segunda, distribuída para divulgação, foi tirada no mesmo dia na casa em que o garoto, o pai, sua segunda mulher (ele era divorciado da mãe de Elián) e o bebê do casal estão alojados na base. O autor é o advogado de Juan Miguel.

A guerra das fotos traduz a guerra de propaganda pela posse de Elián, que opõe o regime cubano à comunidade anticastrista de Miami, com o governo dos EUA em atípica inclinação, ainda que dissimulada, pela primeira parte.

Uma imagem mostra o menino apavorado com a invasão armada, ao lado de um dos homens que o salvaram do mar. Na outra ele aparece sorrindo abraçado ao pai.

No fechamento de suas capas de domingo, editores tiveram de escolher "a" foto. Alguns jornais, como "The Washington Post" e "Los Angeles Times", decidiram-se pelas duas, publicadas lado a lado.

"The New York Times" ficou com a segunda. Ela não existia no início da rodagem. Quando chegou, a primeira foto foi movida para uma página interna. Ficaram na capa pai e filho reunidos e, com menos destaque, Elián chorando no colo de uma agente na saída da casa dos parentes.

Muitos diários deram na primeira página apenas a imagem da operação. Foi o que fez a Folha. Não há problema sério na opção, embora a de duas fotos fosse a ideal no caso.

A cena de Miami tem ação, temperatura e impacto em níveis muito elevados para ser desprezada como notícia. Além disso, é tolice pensar que a via salomônica garante, sozinha, equilíbrio à edição.

O que o leitor mais precisava era de contexto para avaliar uma história repleta de manipulação. E aí está o problema, pois contexto foi o que faltou na capa da Folha de domingo.

Relativamente curto, o título da chamada ("Elián, 6, é tirado à força de parentes") não permitiu dizer que o menino foi "tirado de parentes" para ser devolvido ao pai. Outros jornais reuniram as duas informações em seus enunciados.

O texto omitia que os familiares estavam detendo o garoto de forma ilegal, sem o consentimento do pai e das autoridades de imigração. Também não esclarecia que a operação foi decidida após fracassadas tentativas de negociação.

Para completar, a chamada assumia como fato a versão do rapaz que aparece ao lado de Elián na foto. Segundo ele, o menino gritava ("O que está acontecendo? Ajudem-me") ao ser levado do quarto.

O pacote formado por foto, título incompleto e texto enviesado é uma aula de parcialidade jornalística. Vale lembrar que isso não aconteceu em um dia qualquer, e sim no desfecho da novela (primeira fase ao menos) do "náufrago cubano".

Não parou por aí. Título da chamada de segunda-feira: "Pai fraudou foto em que Elián sorri, diz parente". Era aposta em cavalo errado. A própria reportagem permitia perceber a fragilidade da acusação, que veio a ser refutada (o sorriso pode ou não ser espontâneo; fraude é outra coisa).

No mesmo dia, uma descrição da foto da invasão afirmava que o menino estava "sob a mira" da arma do agente. Àquela altura, exaustiva discussão sobre esse ponto nos EUA já havia concluído que não estava.

Na terça-feira, reportagem sobre a ameaça de greve em Miami lembrava que, no sábado, os familiares haviam "perdido a guarda" do menino, como se pudessem perder o que não tinham.

Até pouco tempo atrás, o quadro "para entender o caso" ensinava que Fidel Castro "tem capitalizado o episódio politicamente". Sem dúvida. Apenas se esquecia de ponderar que os candidatos à sucessão de Bill Clinton tentam fazer o mesmo.

Tudo somado, o leitor pode achar que o jornal vive um surto de obsessão anticastrista. É mais provável que se trate de uma mistura de ingenuidade e desinformação.

Em meio à guerra das fotos, a Folha será útil se conseguir mostrar tudo o que existe entre os extremos de Elián capturados nas duas imagens. Até agora o jornal ficou longe disso.


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