Folha de S. Paulo


Contando fiéis

Em novembro passado, a Folha noticiou, em coro com quase toda a imprensa, que o padre Marcelo Rossi havia reunido 600 mil fiéis em cerimônia religiosa realizada junto ao Santuário do Templo Bizantino, na zona sul de São Paulo.

Na ocasião, cinco leitores me procuraram para defender que o público havia sido menor do que o anunciado.

Dois deles, com experiência profissional em medição de multidões, apresentaram uma série de cálculos para mostrar que simplesmente não caberia esse tanto de gente no local.

Um terceiro tinha presenciado a celebração. Simpatizante de Rossi, ainda assim viu exagero na manchete, baseado em comparações com outros eventos dos quais participara.

Os leitores perguntaram por que a Folha tinha agido como os demais veículos, usando número divulgado pela Polícia Militar quando poderia ter recorrido ao Datafolha.

A Redação deu sinal de que vira fundamento na observação: afirmou que no próximo evento do gênero utilizaria medição do instituto, para chegar a número confiável.

Tudo isso me veio à lembrança na segunda-feira, diante de nova manchete sobre uma "showmissa". O esclarecimento enviado aos leitores caiu no vazio. De novo o título principal da capa estava apoiado apenas no dado da PM.

Não sei se havia 1 milhão de pessoas no autódromo de Interlagos, onde certamente o espaço é maior do que na vizinhança do santuário. Pode ser que sim, pode ser que não.

Acima ou abaixo dessa marca, com 600 mil ou 400 mil no evento anterior, sem dúvida o padre-cantor é hoje um fenômeno de público.

O que está em discussão não é sua capacidade de atrair platéia, mas o procedimento jornalístico. Por mais impressionante que seja a multidão, convencionou-se que para fazer título é preciso ter um número, mesmo quando ele é pouco mais do que chute.

Se o jornal quer número, então que procure um em que possa ter grau razoável de confiança, a despeito da impossibilidade de ser exato em questões como essa. Se relaxar o padrão de exigência, a Folha estará abrindo mão de um dos diferenciais que ajudaram a construir sua credibilidade.

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"Por que ocorreram enchentes?" A pergunta constava de um quadro publicado na edição de quinta-feira. Resposta: "Porque choveu mais em três dias do que a média do mês inteiro no Sudeste".
É isso, mas não é só, escrevi na crítica interna. Até por coerência com a linha que a Folha tem procurado seguir nessa cobertura, de cobrança das responsabilidades, a resposta deveria ter incluído o encolhimento do gasto do governo federal em obras preventivas.

Segundo reportagem que saiu no mesmo dia, em 1999 ele foi o menor dos últimos quatro anos. Reduzir a explicação aos desígnios da natureza, especialmente em um quadro de objetivo didático, é colaborar com o discurso oficial.

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Da série "o ovo ou a galinha". Um leitor enviou o seguinte comentário a respeito do noticiário recente dos jornais: "Há muitas matérias esculhambando economistas por terem errado feio em suas previsões sobre o ano passado".

"Não me importo com que economistas sejam esculhambados. Também acho positivo mostrar que o leitor deve desconfiar de previsões, edulcoradas ou catastrofistas. Resta, porém, uma questão: se economistas erram tanto, por que a mídia lhes dá tanto espaço?"

"Se há diagnósticos equivocados em profusão, não são apenas os oráculos os culpados; os jornais também têm sua parcela de responsabilidade."


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