Folha de S. Paulo


Pequenos tropeços, grandes negócios

"Silenciosa e quase improvável." Assim foi descrita, na manchete da "Gazeta Mercantil" de sexta-feira, a fusão de Brahma e Antarctica.

Os adjetivos refletem a completa surpresa da imprensa diante do anúncio, extensiva ao diário especializado em economia e negócios.

Pelas cifras e símbolos envolvidos, a história tem dimensão inédita no Brasil. Os jornalistas estavam tão no escuro quanto os leitores, que esperam dos primeiros não apenas informação como instrumentos para avaliá-la.
Diante do inesperado, a Folha não se saiu muito bem.

Sua edição de sexta-feira tinha aparência _amplo destaque na capa e três páginas internas dedicadas ao assunto.

Olhada de perto, no entanto, ela carecia de elementos relevantes. Alguns exemplos que anotei na crítica interna:

- apesar da profusão de bilhões (de reais e de litros de bebida) em textos e quadros, o jornal não dimensionava adequadamente a associação. Se concretizada, esclarecia a "Gazeta", ela dará origem à maior empresa privada de capital nacional do Brasil.

- não havia na cobertura uma linha que fosse sobre demissões. Anúncios desse tipo jamais abordam o tema, mas é obrigação do jornal colocá-lo em pauta. Ao "Globo", o presidente da Brahma disse o seguinte: "Vamos aproveitar o pessoal na medida do possível, mas vamos fechar fábricas que estão na mesma região".

- além dele, também os presidentes da Antarctica e do Cade, órgão governamental que vai julgar se o negócio fere a Lei Antitruste, foram ouvidos em outros veículos.

- jornal habitualmente rico em opiniões e análises, a Folha se limitou ao relato, pouco discutindo os riscos de cartelização ou o marketing da "primeira multinacional verde-e-amarela". Apenas a coluna de Eliane Cantanhêde notou o detalhe insólito de o acordo ter sido anunciado no Palácio da Alvorada, com FHC no papel de garoto-propaganda da transação que seu governo terá de averiguar.

Parte dessas deficiências foi sanada na edição de ontem, mas o cochilo inicial indica que faltou agilidade diante de algo grande e não programado, ou seja, da pura notícia.

A Folha costuma se mover melhor no noticiário de política e macroeconomia do que no de negócios (exemplo recente foi a fraca reportagem sobre o arrendamento de lojas da rede de supermercados Paes Mendonça pelo grupo Pão de Açúcar).

Essa fragilidade merece reflexão por parte do jornal. Tudo indica que a importância do assunto só tende a crescer.
*
Diante dos jornais do início da semana passada, pensei que não havia retornado de Portugal, onde estive até segunda-feira para participar de um encontro sobre liberdade de informação.

Era "cimeira" para todos os lados. Já tinha conhecimento, antes de viajar, de que seria esse o nome oficial da reunião, no Rio, de chefes de Estado e de governo da América Latina, Caribe e União Européia.

Ainda assim, fiquei surpresa com a rápida adesão dos jornais à palavra, em detrimento da boa e velha "cúpula". Nada contra a diversificação do vocabulário, mas o fenômeno não deixa de ser engraçado.

Em quadro publicado ao longo do evento, a Folha explicava que o termo designa reuniões de cúpula em "todos os outros" países de língua portuguesa. Em uma ocasião, informou que a escolha havia resultado do uso de um tradutor português em reunião preparatória da "cimeira".

O esclarecimento não satisfez este leitor:

"A acreditar na explicação da Folha, acreditarei em contos da carochinha. Se a tradução de 'summit' foi a de cimeira, isso não ocorreu porque em São Tomé e Príncipe ou em Macau se fala assim, mas porque os tradutores são de fala lusitana, e não instruídos no português do Brasil."

"Esse é um caso claríssimo em que língua é poder. Portugal, país pequeno e de pouca importância no mundo, é mais ouvido na União Européia do que o Brasil, com suas dimensões e economia. Pode assim impor sua versão do mundo, a cimeira, em vez da nossa, a cúpula."

"Independentemente de a escolha ter sido ou não proposital, o episódio é significativo de nossa inferioridade em face da UE."


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