Folha de S. Paulo


A campanha que não houve

Há duas maneiras de avaliar o desempenho da Folha na campanha que chega hoje ao primeiro turno da votação.
A primeira consiste em compará-la com seus concorrentes. Resulta em saldo positivo.

Entre erros e acertos, o jornal realizou nessa cobertura um investimento bastante superior ao do "Estado'', por exemplo. Tratou a sucessão como assunto prioritário.

Foi por demais benevolente consigo mesmo ao concluir, com base em levantamento interno, que teria havido equilíbrio na distribuição de espaço entre os principais candidatos.
Na segunda rodada desse auto-exame, cujos resultados foram publicados na edição de ontem, teve o bom senso de reconhecer que o instituto da reeleição comprometeu seriamente essa alegada igualdade.

De todo modo, em uma cobertura na qual a opção da mídia pela candidatura do presidente Fernando Henrique Cardoso reduziu drasticamente o espaço para vozes dissonantes, a busca de algum parâmetro merece crédito.

Para citar apenas dois momentos, esta foi uma campanha em que o "Estado''' chegou ao ponto de banir de sua capa o principal gesto oposicionista da reta final _o manifesto de Lula e Ciro Gomes.
O ''Globo'' fez o mesmo com o aumento de impostos mencionado por FHC em seu discurso sobre a crise econômica.

Frente a esses métodos primitivos de favorecimento ao governo, não é tão difícil para a Folha considerar que se saiu relativamente bem.
No entanto, quando se avalia a atuação do jornal sem levar em conta os demais, o resultado decepciona.

A Folha não poderá dizer que passou ao largo da boa vontade excessiva que marca as relações da imprensa com o candidato-presidente.
Quando o jornal bateu duro em Francisco Rossi por ter fugido do debate na TV Cultura, leitores perguntaram à ombudsman por que a recusa de FHC em participar de qualquer evento desse gênero não provocou reação semelhante.

Embora considere agravante o fato de Rossi ter inicialmente aceitado comparecer, enxergo no protesto desses leitores uma boa dose de razão.
A preocupação em garantir certa equidade na distribuição do espaço pouco se traduziu em discussão política.

Alguém poderá argumentar que isso ocorreu devido à fragilidade das propostas apresentadas, quando não de sua inexistência.
Mas, se a Folha critica a transformação da campanha na venda de criaturas inventadas pelos publicitários, não deveria abdicar do papel de estimular debate verdadeiro.
É certo que o amplo favoritismo de FHC, uma única vez abalado, contribuiu para reduzir o interesse pela disputa.

Mas, se o jornal se entrega ao diagnóstico de que a eleição é morna, nada tem a oferecer além do senso comum.

Os resultados de pesquisas, que em eleições anteriores haviam proporcionado ao jornal a antecipação de tendências, renderam menos desta vez.

O cronograma de publicação dos levantamentos de intenção de voto fez com que a Folha não fosse a primeira a identificar os dois únicos "turning points" do eleitorado na sucessão presidencial _o empate técnico entre FHC e Lula e, em seguida, o descolamento do presidente.

O Datafolha foi o primeiro instituto a detectar dois movimentos importantes na disputa paulista _o empate do governador Mário Covas com Rossi e, logo depois, a subida de Marta Suplicy e o embolamento do segundo lugar.

Mas esta é uma outra história, que não se encerra hoje e ainda renderá pesquisas e comentários da ombudsman.
A Folha inovou no uso de pesquisas qualitativas e de levantamentos instantâneos que monitoram a reação dos telespectadores a esse mundo de fantasia conhecido como horário eleitoral gratuito.
Não quero parecer ranzinza, pois, em princípio, acho positiva a utilização desses instrumentos para enriquecer a investigação jornalística.

Mas me pergunto se eles não acabaram supervalorizados. "Eleitor de fulano gosta mais do programa de TV de beltrano''. E daí?

Em meio a um punhado de boas reportagens, especialmente sobre a sucessão nos Estados, muita coisa recebeu mais destaque do que merecia no Eleições. Sobrou lugar até para a receita do pastel favorito de Covas.

Na verdade, o caderno foi um pouco atropelado pelo agravamento da crise econômica, que deixou fora de suas páginas o noticiário mais importante do momento.
Na sexta-feira, por exemplo, enquanto Dinheiro trazia o economista Paul Krugman prevendo anos de ''recessão terrível'' para o Brasil, a manchete do Eleições registrava que ''termina a campanha do primeiro turno''.

Com o circo pegando fogo no caderno vizinho, o Eleições tem se alimentado basicamente de jornalismo declaratório.

Este jamais deixará de existir na cobertura política, mas ainda aparece muito mais do que seria adequado. Em seu melhor momento, permitiu à Folha registrar a frase infeliz do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ilmar Galvão, a respeito da reeleição de FHC

Contrariando alguns leitores que me procuraram para comentar o caso, penso que a Folha acertou ao destacar a declaração. Ouvi a fita da entrevista e não houve distorção por parte do jornal. O fundamental nesse episódio é que Ilmar Galvão jamais poderia ter dito o que disse.

Nos seus piores momentos, esse tipo tradicional de cobertura política rendeu reportagens como a que dizia que o presidente do Congresso relatara a aliados o temor de que a fala desastrada do presidente do TSE pudesse prejudicar FHC, empurrando a eleição para o segundo turno.

A informação foi contestada por Antonio Carlos Magalhães, em carta no ''Painel do Leitor'', e o jornal não se pronunciou _nem para sustentar a reportagem, nem para corrigi-la.

Fiz o exercício de imaginar o que será lembrado da atual cobertura eleitoral da Folha. A meu ver, até o momento duas coisas: a manchete errada acusando Lula e o escorregão do presidente do TSE.
O primeiro episódio constrangeu o jornal. O segundo foi um acerto, mas de peso bastante relativo. Novamente, é possível dizer que não havia mesmo muito assunto. Com a situação do país que começa a ser descortinada para o público, fica difícil de aceitar essa interpretação.


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