Folha de S. Paulo


Para vencer obscurantismo, ciência precisa de mais do que argumentos

Na semana passada, escrevi uma reportagem para explicar por que a Terra é (aproximadamente) esférica, e não plana, feito uma pizza cósmica. Na semana retrasada, precisei entrevistar um astrônomo para demonstrar que, veja bem, nosso planeta não estava prestes a ser estraçalhado por um astro monstruoso vindo das profundezas do Sistema Solar e conhecido popularmente como Nibiru, Hercólobus ou Planeta Chupão.

Tá puxado, como diz o vulgo. Será que dá para fazer alguma coisa contra esse tsunami de bobagens que insiste em nos afogar?

Bem que eu queria estufar o peito e proclamar que o jornalismo científico de qualidade (tipo o que nós fazemos nesta Folha, acrescentaria eu cabotinamente) é capaz de levar luz às massas, por meio da informação equilibrada e apoiada por argumentos racionais. Ia ser lindo se isso funcionasse, mas há boas razões para acreditar que esse tipo de abordagem só consegue alterar o que se passa dentro da cachola de uma parcela ínfima das pessoas.

Nasa
Estrela V838 Monocerotis, que fãs de Nibiru tratam como uma imagem do suposto astro assassino
Estrela V838 Monocerotis, que fãs de Nibiru tratam como uma imagem do suposto astro assassino

Isso significa que combater o bom combate em defesa dos dados científicos é perda de tempo? Eu não iria tão longe (até porque, se isso estivesse demonstrado cabalmente, já estaria pulando do alto do viaduto mais próximo), mas a gente tem de saber exatamente o tamanho do monstro que está enfrentando antes de sacar a espada –e o ogro em questão é imenso, não dá para negar.

Aliás, ogro não, ogros –como os demônios, o nome deles é Legião. Ou, se você quiser algo menos poético, pode chamá-los de vieses cognitivos humanos. Todos nós, em maior ou menor grau, somos portadores dessas distorções sistemáticas de raciocínio, que são uma porcaria se a sua intenção é buscar a verdade de modo objetivo, mas serviram bastante bem aos nossos ancestrais (e ainda nos servem) na hora de fazer o serviço pesado da sobrevivência num mundo complicado e imprevisível.

Temos o nosso querido viés de confirmação, que nos faz ver só os fatos que confirmam o que já achávamos desde o início, em vez de levar em conta dados que desafiam nossas crenças; o chamado reforço comunal, no qual ideias improváveis (ou mesmo absolutamente ridículas) parecem mais atraentes quando são adotadas por um grupo coeso (algo que as bolhas de "amigos" das redes sociais reforçam com facilidade); e a simples tendência, demasiado humana, de achar padrões lógicos conectando eventos, mesmo quando tais padrões só existem na cabeça do sujeito.

Calma, a coisa fica ainda pior. Uma coisa que tem ficado cada vez mais clara em estudos recentes sobre comunicação científica é a existência do chamado "backfire effect" (algo como "efeito culatra" –é, eu sei, fica meio pornográfico em português). Em suma, quanto mais dados bem fundamentados você tenta jogar nas fuças do cidadão para ver se ele enxerga que está errado, mais fundo ele se entrincheira na sua posição estapafúrdia.

Em muitos casos, quanto mais a pessoa sabe sobre um assunto, maior a sua dificuldade de mudar de opinião quando confrontada com informações relevantes –e, claro, deveria ser o contrário.

Está na hora, portanto, de abandonar ilusões sobre o poder da argumentação racional. Caçoar de adeptos de ideias malucas é fácil, mas contraproducente. Se não buscar caminhos para atingir o íntimo das pessoas, seus sonhos e suas aspirações, a ciência corre o risco de ficar falando sozinha.


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