Folha de S. Paulo


Saga da evolução do homem permite algum otimismo em relação à violência

Andrew Bernard/Divulgação
Legenda: Chimpanzé machucado após briga; estudo mostra que comportamento violento é natural à espécieCrédito: Andrew Bernard/Divulgação
Chimpanzé ferido após briga com outro animal no Parque Nacional Kibale, na Tanzânia

Já tive o privilégio de entrevistar algumas vezes o biogeógrafo americano Jared Diamond, autor de livros que são clássicos da interface entre história e biologia como "Armas, Germes e Aço" e "Colapso". Quando perguntam a Diamond se acalenta alguma dose de otimismo em relação ao futuro da nossa espécie, ele costuma responder que é um sujeito "cautelosamente otimista". Como esse tal otimismo cauteloso me parece um estado de espírito apropriado para um ano que acaba de começar, gostaria de dividir com o insigne leitor ao menos uma razão para se sentir otimista (de leve): a trajetória (pré-)histórica da violência entre seres humanos.

"Reinaldinho", dirá você, "o que andaste bebendo ou cheirando na festa da virada, meu filho?". Nada tema: eu não sou de ingerir etanol, nem mesmo em doses homeopáticas, e tampouco faço uso de outras substâncias recreativas capazes de cruzar a barreira sangue-cérebro (ademais, estou escrevendo isto aqui na pacata tarde do dia 30).

Sim, todos vimos o horror apocalíptico de Aleppo, o ambulante morto a pancadas no metrô de São Paulo e os relatórios intermináveis da guerra civil urbana brasileira, um horrendo conta-gotas que anestesia a uns e brutaliza a outros, com números de fazer inveja ao Estado Islâmico. A boa notícia é que já fomos muito, muito piores como espécie, de tal modo que faz sentido ver nossos tempos de aparente tribulação como, na verdade, o período mais pacífico da história da humanidade.

Por isso, toda vez que me sinto desanimado com o mundo, tento dar uma olhada na tabela compilada e publicada neste ano por um grupo de cientistas espanhóis, capitaneados por José María Gómez, da Universidade de Granada. Gosto de pensar nessa tabelona, que saiu na revista científica "Nature", como uma espécie de cabeça de Jano –o deus romano dos fins e dos começos, que tinha duas faces, uma voltada para o passado, outra para o futuro, e que teria emprestado seu nome ao mês de janeiro. Como Jano, os números da pesquisa mostram como a evolução nos moldou no passado distante –e como fomos transformando nosso próprio futuro.

Resumo rápido: nós claramente não somos anjinhos. Dados arqueológicos e comparações com outras espécies de grandes primatas mostram que ao menos 2% das mortes da nossa espécie, em condições "naturais", eram causadas por outros seres humanos, o que é bem mais do que os 0,3% da média dos outros mamíferos.

Mas esse estado "natural" das coisas se alterou rapidamente assim que desenvolvemos sociedades complexas, com agricultura, uso dos metais, classes sociais e governantes, a partir de uns 6.000 anos atrás. Primeiro a taxa de mortes violentas subiu um pouco –reis e guerreiros adoram dar espadadas em inimigos, como sabemos– mas nos últimos 500 anos ela caiu para pouco mais de 1% e, no último século, ficou em 0,14%. Pois é: metade da média dos demais mamíferos, mesmo com duas guerras mundiais nas nossas costas.

Nada disso significa que os horrores de hoje não sejam reais, é claro. Por outro lado, os dados podem muito bem estar indicando que nossos piores impulsos são mais maleáveis do que um decreto do Destino. Um dia a gente aprende, em outras palavras. Que todos os que me leem tenham um Ano Novo fantástico, se Deus e a evolução quiserem.


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