Folha de S. Paulo


Pequeno guia anticascata climática

O objetivo da coluna de hoje é eminentemente prático, gentil leitor. Quando o assunto é mudança climática, há sempre a desagradável tendência de sucumbirmos ao milagre da multiplicação das cascatas. Ofereço este texto como um escudo antibobagem, portanto. Espero que seja útil. Para facilitar seu trabalho, decidi numerar algumas das falácias mais comuns.

1)"Temperatura média não quer dizer nada." Essa eu já tive de ouvir da boca de gente que fez doutorado nos EUA, por incrível que pareça. Segundo esse argumento, não há razão para se preocupar com o aumento da temperatura média do planeta ao longo do último século porque, veja bem, a média seria irrelevante. "Se você botar a sua cabeça num freezer e os seus pés num forno ligado, a temperatura média do seu corpo será amena", completava o douto cético do clima.

Tal objeção deixa de fazer sentido assim que você se dá conta de que a Terra é um sistema semifechado. OK, recebemos nossa imprescindível cota de energia solar todos os dias, mas a grossa camada de gases que recobre o planeta faz com que parte substancial dessa energia fique retida por aqui.

O que significa que, se a Antártida é o freezer e o Saara é o forno, a energia térmica inevitavelmente vai circular de um lugar para o outro. É por isso que existem correntes marítimas e ventos. É inevitável que um aumento médio da temperatura global altere os parâmetros do forno e do freezer, portanto - e, no meio do caminho, altere os fluxos essenciais de energia entre esses extremos, com consequências para todos nós.

2)"O gás carbônico e o efeito estufa são 'do bem'. Afinal, não haveria vida sem eles." Esse é mais um dos clássicos da série "Como contar uma mentira constrangedora dizendo apenas verdades". Sim, sem o gás carbônico, a Terra talvez fosse um grande deserto gelado. Depois do vapor d'água, o gás carbônico é o principal responsável pelo efeito estufa, ou seja, a capacidade de reter dentro da atmosfera terrestre o calor produzido pela radiação solar, mais ou menos como um cobertor retém o calor do seu corpo na cama. Calcula-se que a temperatura média deste planeta seria de -18ºC (e não os amenos 15ºC de hoje) sem essa mãozinha do efeito estufa.

No entanto, como já sabiam os médicos da Antiguidade, o veneno é a dose. Vale dizer: quanto maior a quantidade de gás carbônico na atmosfera, maior as chances de o Rio de Janeiro virar o Hell de Janeiro, como dizem alguns amigos cariocas. Quem quiser tirar a prova ganha uma passagem só de ida para Vênus, o planeta com tanto gás carbônico que o efeito estufa de lá é capaz de derreter chumbo.

3)"O clima da Terra sempre variou e continuará variando." Verdade. Este ano será o mais quente da história, em parte, por causa do El Niño, um fenômeno natural cíclico. Fatores como explosões na superfície do Sol, variações na órbita da Terra e vulcões alteram o clima no curto e no longo prazo.

No entanto, o raciocínio do item 2 ainda vale. Cada vez que você liga o seu carro a gasolina, está jogando CO2 na atmosfera. A consequência física inevitável de milhões de ações como essa é um planeta um tiquinho mais quente. Só não vê quem não quer.


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