Folha de S. Paulo


Malabarismos mendelianos

Você se lembra do Mendel? É, aquele frade da ervilha verde e da ervilha amarela, do "azão azão" (ou AA) que cruza com o "azinho azinho" (aa) das aulas de biologia.

Passei algumas das horas mais divertidas da minha adolescência aprendendo a juntar "azão" com "azinho" e vislumbrando os mistérios dos genes dominantes e recessivos. E se os resultados seminais desse sacerdote da atual República Tcheca, conhecido como o pai da genética moderna, na verdade fossem meio esquisitos? E se o título mais adequado para ele fosse o de pai da má conduta científica moderna?

Por incrível que pareça, a controvérsia existe desde o comecinho do século passado, ainda que livros didáticos não costumem mencioná-la.

É o que conta Gregory Radick, historiador da Universidade de Leeds (Reino Unido), em artigo na "Science". Ocorre que o trabalho de Gregor Mendel com as celebérrimas ervilhas híbridas, de 1866, caiu no esquecimento por décadas. Foi só em 1900 que a obra do frade passou a ser relida e replicada. No meio do caminho, porém, havia um tal Raphael Weldon, que tomou contato com os experimentos mendelianos em outubro daquele ano.

Um dos pioneiros da aplicação de métodos estatísticos precisos ao estudo da biologia, o britânico Weldon começou a achar que havia algo de muito esquisito nos números dos experimentos de Mendel. Talvez você se lembre de que, além das ervilhas amarelas e verdes, o padre também estudava ervilhas lisas e rugosas. Primeiro, ele cruzou ervilhas lisas com rugosas e, mais tarde, cruzou as ervilhas híbridas, resultado desse cruzamento, entre si.

Conclusão: de um total de 7.324 ervilhas geradas nesse segundo cruzamento (haja paciência e vista boa para contar tanta ervilha), 5.474 eram lisas (por carregarem ao menos uma cópia do gene dominante para "lisura", como dizemos hoje).

E daí? Daí que o número fica muito perto de ser uma proporção exata de 75% de ervilhas híbridas de segunda geração lisas, valor que era precisamente o predito pela teoria de Mendel. Weldon aplicou técnicas estatísticas aos dados e concluiu que eles estavam arrumadinhos demais –o esperado seria haver desvios estatísticos mais claros em relação ao resultado previsto pela teoria.

O britânico calculou ainda que, se os mesmos experimentos fossem realizados de novo, a chance de os resultados se desviarem mais da proporção de 75% seria de 16 para 1. E resumiu a situação numa carta a um colega: "Ou ele [Mendel] é um mentiroso, ou é um homem maravilhoso". Até sua morte, em 1906, Weldon continuou não engolindo as ervilhas.

O fato é que, apesar de tudo, a visão de Mendel acabou triunfando entre os biólogos, ainda que os resultados experimentais raramente fossem tão certinhos quando os dele.

Não há nenhuma evidência de que, de fato, tenha havido fraude de caso pensado. Para Radick, o mais provável é que Mendel tenha feito contagens mais precisas do que o normal de forma inconsciente.

A verdadeira lição, para o historiador da ciência, é que quase sempre as características biológicas têm uma variação bem mais gradual do que a simples oposição binária entre ervilhas lisas e rugosas. O conjunto dos genes de um ser vivo e a influência do ambiente tendem a produzir uma diversidade bem maior de características. É esse contexto que ainda precisa ser considerado quando estudamos genética.


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