Folha de S. Paulo


Por que ainda existem macacos?

Se eu ganhasse um centavo toda vez que alguém faz a pergunta acima depois de ler um texto que escrevi (ou depois de clicar nele, pelo menos), já teria juntado dinheiro suficiente para comprar algumas Ferraris, um iate e uma quitinete na Vila Leopoldina.

É batata -basta falar em evolução humana que as muitas pessoas que não aceitam a ideia logo levantam essa objeção. Afinal, se o homem veio "do macaco" (curiosamente, ninguém diz qual macaco; só no Brasil há mais de uma centena de espécies), por que toda essa macacada ainda existe mundo afora? Estão esperando o que para virar gente?

Permita-me, insigne leitor, reformular a pergunta. Se o Brasil foi colonizado por Portugal, por que ainda existem portugueses?

Sou capaz de apostar que, depois dessa, muita gente está achando que eu forcei a barra. A questão aqui é muito mais simples: a analogia funciona porque, nos dois casos, tínhamos uma "população-mãe" que se dividiu, em termos geográficos, em duas "populações-filhas". A passagem do tempo faz o resto do serviço.

É claro, porém, que outros fatores bem mais complicados estão em jogo quando o assunto é a história de toda uma espécie. Dois pontos são cruciais, que chamarei aqui de "oportunidade" e "matéria-prima".

Os detalhes exatos ainda precisam ser elucidados, mas é virtualmente certo que os primeiros membros da linhagem humana não passavam de grandes macacos africanos que adotaram, há pelo menos 6 milhões de anos, algum tipo de postura bípede. Não sabemos por que esse tipo inovador de locomoção prosperou -talvez ele esteja ligado a alterações na estrutura das florestas tropicais da África de então, que teriam ficado mais ralas. É indiscutível, porém, que alguma oportunidade ambiental estava presente como gatilho da aurora da nossa história evolutiva.

Oportunidade, entretanto, não é tudo. Vários tipos de primatas talvez pudessem ter se beneficiado da nova "fatia de mercado" na qual nossos ancestrais investiram, mas para isso era preciso contar com a matéria-prima genética -ou seja, algumas mutações no DNA- que permitiu os primeiros passos da transformação de um primata quadrúpede em seus descendentes bípedes. Esse talvez seja, de fato, o único verdadeiro "acaso" na história toda: o aparecimento da variabilidade genética segue padrões que são, em larga medida, aleatórios.

Isso explica, em parte, porque não há outros grandes macacos bípedes por aí -faltou matéria-prima no genoma deles. Há, contudo, outro ponto crucial. Achar que os outros primatas também "deveriam" ter virado gente é um ponto de vista com uma premissa oculta: a de que, do ponto de vista da sobrevivência, ser gente sempre foi sinônimo de superioridade. A questão é que não foi.

Esqueça por um instante os 7 bilhões de pessoas no mundo hoje. Há uns 30 mil anos atrás, quando já éramos a única espécie de macaco bípede da Terra (as outras tinham se extinguido), nossa população global era de alguns milhões de indivíduos -não muito superior à população de chimpanzés antes das espingardas e motosserras modernas.

Aliás, o fato de que diversos outros membros da linhagem humana (como os neandertais) desapareceram deveria ser suficiente para desfazer nossa aura de sucesso inevitável. Outras espécies poderiam ter chegado até aqui conosco -ou ninguém poderia ter escapado. Não é tão mau negócio assim ser macaco.


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