Folha de S. Paulo


Geocentrismo humildão

Prometo que esta é a última vez que falo mal de Freud na coluna, mas é que eu não me aguento diante do ego (sem trocadilhos) do pai da psicanálise.

O médico austríaco declarou certa vez que a humanidade havia recebido três grandes bordoadas em "seu ingênuo amor-próprio" ao longo da história: a descoberta de que a Terra não era o centro do Universo; a de que a nossa espécie tinha evoluído a partir dos animais; e "o terceiro e mais amargo golpe", a descoberta do domínio avassalador do inconsciente sobre nossas ações, feita, é claro, pelo próprio Freud (modéstia pra quê, né?).

Acontece que ele, junto com uma longa linhagem de pensadores e cientistas sem muita familiaridade com a cosmologia da Idade Média, provavelmente estavam errados em relação ao item 1. Para os eruditos antigos e medievais, colocar a Terra no centro do Cosmos não equivalia a dizer que ela era o lugar mais importante: significava que ela era o lugar mais tosco.

Não sou eu que estou dizendo, gentil leitor –é são Tomás de Aquino (1225-1274). O maior filósofo da Igreja medieval afirmava o seguinte sobre a posição cósmica do nosso planeta: "No Universo, a Terra –que é circundada por todas as esferas e que tem como seu lugar o centro– é o mais material e ignóbil [ou tosco/grosseiro; o termo em latim possibilita ambas as traduções] de todos os corpos".

O pensador judeu Moisés Maimônides (1135-1204) ia na mesma linha: "No caso do Universo, quanto mais suas partes estão próximas do centro, maior é a sua turbidez, solidez, inércia e escuridão, pois estão mais distantes do elemento mais elevado, da fonte da luz e da claridade".

Por trás dessas afirmações de geocentrismo humildão (ou seja, que enxergam a posição central da Terra como motivo de humildade, e não de glória) estão as ideias sobre física do grego Aristóteles, do século 4º a.C.

Aristóteles herdou da tradição filosófica grega a doutrina sobre os quatro elementos do Universo (terra, ar, fogo e água) e propôs que o elemento mais pesado (justamente a terra) naturalmente ficaria depositado no centro da estrutura cósmica –e é por isso, em suma, que estamos aqui. O que vemos nos céus é tão elevado e perfeito, segundo as concepções aristotélicas, que seria composto de um quinto elemento, o éter.

A ironia das ironias é que, quando o sacerdote polonês Nicolau Copérnico publicou sua proposta de um Cosmos com o Sol no centro e a Terra girando em torno dele, em 1543, a primeira crítica de um membro da Igreja Católica à ideia (escrita pelo frade dominicano Giovanni Maria Tolosani) destacou o absurdo do rebaixamento... do Sol. "Copérnico coloca o Sol indestrutível num lugar sujeito à destruição", escreveu Tolosani.

E, falando em ironia, os defensores do heliocentrismo (centralidade do Sol) destacavam que a nova teoria enobrecia a posição da Terra, em vez de rebaixá-la. Para o astrônomo Johannes Kepler (1571-1630), o ser humano fora criado para a contemplação, e por isso "não podia ficar imóvel no centro, mas precisava fazer uma jornada anual num barco, que é a nossa Terra, para realizar suas observações. Não há globo mais nobre ou adequado ao homem do que a Terra".

Em tempo: nenhum pensador medieval de respeito achava que a Terra era chata –mas isso já é outra história.


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