Folha de S. Paulo


A conta da luz "limpa"

"Deitado eternamente em berço esplêndido" sempre me pareceu o verso mais infeliz do hino nacional, ao menos em retrospecto. É possível usá-lo para resumir aspectos desagradáveis da vida no Brasil (escolha o seu favorito), mas creio que ele descreve especialmente bem a nossa acomodação com o suposto papel de potência energética "limpa".

Afinal de contas, Deus fez o favor de nos presentear com rios caudalosos à vontade e, até para não fazer desfeita ao criador, vamos enchendo os ditos rios com grandes hidrelétricas, resolvendo assim o problema da conta de luz sem fazer mal ao planeta. Lindo, hein? Só que não.

É cada vez maior a massa de dados científicos mostrando que as usinas hidrelétricas estão longe de ser um primor quando o assunto é impacto ambiental. Os problemas vão de alterações significativas na diversidade e abundância de peixes (é o que acontece quando você transforma um movimentado leito de rio num lagão plácido) a emissões de gases causadores do aquecimento global, supostamente o melhor argumento verde em favor dessas usinas. (Na verdade, inundar áreas de floresta, com o consequente apodrecimento das plantas, leva a "arrotos" significativos desses gases durante vários anos.)

O derradeiro prego no caixão da fama sustentável das grandes hidrelétricas vem de um estudo que acaba de sair na revista científica "PLoS ONE", de Maíra Benchimol, da Universidade Estadual de Santa Cruz (BA), e Carlos Peres, da Universidade de East Anglia (Reino Unido). Eles demonstraram o impacto devastador da usina de Balbina, no Amazonas, sobre a biodiversidade.

Balbina possui um reservatório gigantesco, com mais de um terço da área da região metropolitana de São Paulo. Mesmo após o enchimento da represa, sobraram no lago cerca de 3.500 ilhas. Um quarto de século após a formação do reservatório, os pesquisadores foram à região para mapear o que aconteceu com as populações de animais de grande e médio porte que se refugiaram nas ilhas quando a usina foi concluída.

Para isso, eles visitaram quase 40 ilhas e algumas regiões do "litoral" da represa, usando observações, análise de tocas, fezes e imagens de armadilhas fotográficas (quando a câmera dispara automaticamente na presença do bicho), para quantificar a presença dos bichos na região de Balbina. Na mira dos pesquisadores estavam espécies de mamíferos (como onças, veados, porcos-do-mato, tatus), aves (como mutuns) e répteis (como jabutis).

Quanto menor a área restante, menor a variedade de espécies com o passar do tempo –tanto porque os bichos começam a ter dificuldade de achar alimento num fragmento pequeno de floresta quanto pela falta (ou baixa qualidade) de parceiros para a reprodução.

Em Balbina, de uma lista de 35 espécies, as ilhas com menos de 10 hectares tinham uma média de seis espécies –ou de duas, se tivessem sido afetadas por incêndios. No geral, estimam os cientistas, 95% das ilhas do "arquipélago de Balbina" perderam cerca de metade das espécies originais. Não é um cenário bonito.

É verdade que poucos projetos atuais propõem inundar áreas descomunais para gerar energia, e que as hidrelétricas, em muitos casos, são menos agressivas que outros tipos de usina. Mas é preciso acabar com a ilusão de que não é preciso pensar muito bem antes de ir abrindo as comportas.


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