Folha de S. Paulo


Filhos de peixe virgem

Este mundo definitivamente não é justo. Não adiantou grande coisa o peixe-serra (Pristis pectinata) ser uma criatura sensacional, capaz de detectar a eletricidade natural emitida pelo organismo das presas com seu focinho em forma de serrote, de usar esse mesmo focinho como um temível sabre dentado ou de alcançar quase oito metros de comprimento.

Com superpoderes de fazer inveja ao Demolidor e tudo, os membros da espécie andam passando pela suprema humilhação de ter de fazer sexo consigo mesmos, por assim dizer, para conseguir se reproduzir.

A questão é que o bicho nunca foi campeão na arte de produzir filhotes - para um peixe, seu ciclo reprodutivo é bastante lerdo, com novas ninhadas de até 20 bebês a cada dois anos. Some a isso a tendência desafortunada a ficar preso por acidente em redes de pesca (alguma desvantagem aquele focinho havia de ter), e o resultado é que a população do animal hoje está entre 1% e 5% do que era em 1900.

O P. pectinata é classificado como espécie criticamente ameaçada, o último passo antes da extinção.

Segundo um novo estudo, o colapso populacional explicaria o fato de alguns peixes-serra estarem sendo gerados pelas fêmeas, sem a participação dos machos -caso de concepção virginal, ou partenogênese, como se diz em grego.

Aliás, o peixe-serra por enquanto é um caso único: o primeiro vertebrado que namora do jeito tradicional, mas é capaz de gerar filhotes normais por partenogênese na natureza. (Existe uma meia dúzia de espécies que fazem isso em cativeiro, e alguns vertebrados, como certos lagartos, que só praticam a partenogênese.)

O trabalho de detetive que permitiu a descoberta do fenômeno está descrito na revista científica "Current Biology". Tudo começou com um trabalho de rotina quando o assunto é biologia da conservação.

A equipe liderada por Demian Chapman, da Universidade Stony Brook (EUA), capturou, marcou e soltou cerca de 200 peixes-serra ao longo da última década. Amostras de DNA dos peixes foram usadas para mapear microssatélites, espécie de gagueira do genoma (trechos repetitivos do DNA, como GAGAGA, digamos) que ajuda a estimar relações de parentesco.

Na grande maioria dos casos, as análises não revelaram nada de muito esquisito. Mas sete peixes-serras, todos do sexo feminino e cinco deles gerados pela mesma fêmea, apresentavam um padrão de microssatélites inesperado.

Para entender qual era a esquisitice, lembre que seres vivos que se reproduzem pelo cruzamento entre um macho e uma fêmea, como quase todos os vertebrados, em geral recebem duas cópias de cada gene, uma do pai e a outra vinda da mãe.

É muito comum que cada indivíduo carregue duas versões diferentes de cada gene, uma paterna e outra materna. Acontece que os sete peixes tinham, quase sempre, duas cópias idênticas dos tais microssatélites, o que é praticamente impossível -a não ser que uma célula do organismo da mãe tenha se fundido ao óvulo para gerá-los.

Acredita-se que a dificuldade de encontrar parceiros tenha estimulado essa estratégia biológica em algumas fêmeas da espécie. O impacto predatório da ação humana, pelo visto, parece ser capaz de subverter até aspectos tão básicos da trajetória evolutiva da espécie.


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