Folha de S. Paulo


Mônica, a pedomórfica

Comparar historinhas antigas e modernas da Turma da Mônica é uma experiência esquisita. Considere, por exemplo, o eterno refrão de bullying do Cebolinha, "Baixinha, golducha e dentuça!". Não sei o que é mais estranho: o fato de os personagens hoje serem todos igualmente baixinhos e gordinhos (o que deveria reduzir o bordão do moleque a um simples "Dentuça!"), ou a aparência da Mônica nos anos 1970: pernas relativamente compridas e finas, carona esticada e nada fofinha. Baixa e gorda onde, meu Deus?

Acontece que a evolução da aparência das criaturas de Mauricio de Sousa ao longo das últimas cinco décadas tem tudo para ser considerada um caso clássico de pedomorfose, ou pedomorfismo. Isso é grego, claro, e significa algo como "forma de criança". Um fenômeno muito parecido afetou outro ícone infantil, ninguém menos que Mickey Mouse, conforme apontou o saudoso paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002) em um dos ensaios recolhidos no livro "O Polegar do Panda".

Nos dois casos, o mesmo conjunto de características conspira para deixar os personagens indiscutivelmente mais fofos do que eram suas versões originais. Os olhos ficaram maiores (Gould lembra que só as pupilas do Mickey atual já têm diâmetro equivalente aos olhos inteiros do camundongo dos anos 1920), a cabeça é mais arredondada e avantajada em relação ao resto do corpo, as pernas passaram a ser mais curtas e cheinhas. Coincidência?

É bem provável que não. A evolução convergente (ou seja, traços semelhantes aparecendo de forma independente) da Mônica e do Mickey deriva, óbvio, do faro mercadológico dos cartunistas – afinal, personagem fofinho vende bem.

Mas tal sucesso comercial só acontece porque as versões fofuchas parecem estar tirando partido de uma preferência cognitiva humana muito arraigada, a qual, segundo muitos especialistas, ajudou a forjar a nossa própria aparência, e não apenas a dos astros dos nossos gibis.

Isso porque os filhotes de mamíferos como nós dependem de um período longo de cuidado materno (e, às vezes, paterno) para chegar sãos e salvos à vida adulta.

A anatomia dos bebês sinaliza essa necessidade de cuidado com um conjunto clássico de características anatômicas, que varia surpreendentemente pouco de espécie para espécie: olhões, cabeça proporcionalmente grandona, gordura estrategicamente distribuída pelo corpo "" a não ser que você tenha um coração de pedra, sabe perfeitamente bem do que estou falando e se derrete todo quando vê o conjunto.

Ocorre que os seres humanos não apenas reconhecem (e curtem) tais traços em seus filhotes como também parecem ter passado por um período de "pedomorfização" conforme se separaram dos demais primatas. Em certo sentido, um Homo sapiens adulto lembra bastante um feto ou bebê de chimpanzé –a lista de traços em comum é grande, incluindo o corpo relativamente glabro (sem pelos), o maxilar e os dentes pequenos, o crânio mais arredondado e, claro, os olhos maiores.

Como temos uma vida social muito mais pacífica que a de quase todos os demais primatas, acredita-se que nossa tendência ao fofinho ajudou a cimentar os elos entre nós. Até nossos bichos de estimação são mais pedomórficos do que seus ancestrais selvagens. A trajetória de Mônica e companhia não é a exceção, mas a regra.


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