Folha de S. Paulo


Freud (não) explica

É possível que a carreira de Sigmund Freud (1856-1939) tenha sido a maior oportunidade perdida da história da ciência. Talvez seja exagero afirmar que a influência freudiana atrasou o desenvolvimento da psicologia e da psiquiatria em no mínimo 50 anos, como escreveu o psicólogo alemão Hans Eysenck, mas mesmo um olhar mais generoso sobre a obra de Freud acaba levando à impressão de que ela sobrevive bastante mal ao teste dos fatos.

Falei em "oportunidade perdida" no parágrafo acima porque a carreira do médico austríaco começou com uma base experimental sólida.

Numa época em que o conhecimento básico sobre o cérebro ainda engatinhava, Freud se tornou um estudioso aplicado da anatomia cerebral, usando dados da área para estudar problemas de fala. Ele chegou a apostar que os neurologistas do futuro seriam capazes de entender as bases químicas dos mecanismos da mente, ideia que, no fim do século 19, não deixava de ser profética.

Freud, além disso, acertou ao colocar o inconsciente como responsável pelo grosso dos processos mentais. O diabo, porém, está nos detalhes: quando se pôs a tentar demonstrar como tais processos eram gerados, acabou se apegando a um dogmatismo sem base empírica.

Para voltarmos ao inconsciente, por exemplo, sua natureza aparentemente sinistra, que Freud associava a um sem-número de traumas reprimidos e desejos insatisfeitos, provavelmente tem bem mais a ver com o fato de que aquilo que o pesquisador chamava de "ego" –o "eu" consciente e racional que parece decidir as coisas– é uma invenção evolutiva relativamente recente.

Nossos instintos e emoções mais básicas continuam "rodando", feito um aplicativo de smartphone, "por baixo" do ego, simplesmente porque não vale a pena controlá-los de maneira consciente. Reações instantâneas de vida ou morte, ou mesmo julgamentos rápidos a respeito de pessoas confiáveis ou suspeitas, precisam acontecer com velocidade superior à do ego se quisermos funcionar como seres vivos – e isso independe de você ter visto seus pais fazendo sexo quando era criança.

E, falando em pais, as evidências a respeito da suposta centralidade do desejo sexual de crianças pequenas por seus genitores são magras ou nulas. O tabu do incesto não é universal porque alguém o inventou num passado remoto e hipotético, mas porque o contato físico entre mães e bebês desde o nascimento em geral acaba com qualquer interesse erótico que a criançada possa ter pelos pais e familiares.

Em suma, quando tenta afirmar algo de específico e "testável" sobre a psicologia humana, a obra freudiana acaba tropeçando no vício típico de outros grandes pensadores do século 19: o de nunca deixar que fatos feiosos contaminem uma bonita hipótese.

Nada disso significa que não se possa admirar a obra de Freud por suas qualidades literárias ou pela capacidade de criar conceitos e imagens memoráveis, os quais, para o bem e para o mal, são parte indissociável da maneira como o mundo moderno pensa a natureza humana.

Mas o que não se deve fazer é confundir charme com verdade. A imagem do Universo na obra de Dante é igualmente sedutora, mas nem por isso quem estuda astronomia hoje acha que os planetas giram presos a esferas de cristal (e em torno da Terra). É preciso aprender a deixar Freud no lugar dele: no passado.


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