Folha de S. Paulo


Nem todas as polêmicas são iguais

Não foi lá muito auspiciosa a estreia do deputado Aldo Rebelo como ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ao tomar posse, Rebelo procurou justificar seu ceticismo em relação à realidade das mudanças climáticas afirmando que apenas reproduzia a saudável dose de dúvida sobre o fenômeno que já está presente na comunidade científica.

"A polêmica sobre o aquecimento global existe independentemente da minha opinião", disse. "Há cientistas que defendem as duas posições. Eu acompanho o debate."

É tentador imaginar que o sistema climático global tenha resolvido "trollar" o deputado, já que na sexta-feira (16) a Nasa anunciou que 2014 foi o mais quente já registrado.

Não caiamos nessa tentação, porém, até porque um ano só não faz verão. A variabilidade do clima é enorme, o que significa que não dá para tirar conclusões a partir de um único inverno inclemente ou da seca que assola São Paulo. Meu propósito aqui não é malhar o ministro, mas tentar mostrar que nem todas as polêmicas nascem iguais, em especial quando o assunto é ciência.

Deixemos de lado o fato de que praticamente todos os climatologistas do planeta aceitam que o aquecimento global é provocado pela ação humana –a oposição científica à ideia vem basicamente de gente que não é do ramo. Isso, no fundo, é argumento de autoridade. O importante é ir ao cerne do mecanismo da mudança climática, e compreendê-lo não exige doutorado em climatologia. Trata-se de ciência sólida e nem um pouco controversa –física do século 19, aliás.

Com efeito, há cerca de um século e meio os cientistas sabem que certos gases atuam como um cobertor atmosférico, retendo o calor produzido na superfície da Terra pelos raios solares. Também não há dúvida de que o CO2 é um dos mais importantes gases desse tipo, e que a queima de combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial, no fim do século 18, tem sido responsável por um aumento prodigioso da concentração desse gás na atmosfera –de 280 ppm (partes por milhão) para 395 ppm em um par de séculos.

No fundo, isso é tudo o que um tomador de decisões como Rabelo precisa saber. Erupções vulcânicas ou mudanças na atividade do Sol podem amenizar os efeitos dessa exuberância irracional de CO2; mas, enquanto queimarmos gasolina e gás natural, a seta continuará apontando para um mundo mais quente.

Que ninguém me entenda mal: conhecimento científico não é oráculo de Delfos. É, por definição, provisório e falseável. Ou seja, sujeito a ser reformulado, ou a desmoronar, conforme novos fatos e novas maneiras de entender os ditos fatos aparecem.

Não resta dúvidas de que aquilo que acreditamos saber sobre as mudanças climáticas vai se transformar nas próximas décadas, em parte porque o clima global é de uma complexidade de doer, em parte porque poderemos presenciar de camarote os resultados do nosso próprio (e, infelizmente, nem um pouco controlado) experimento planetário.

Mas nada disso afeta o fato de que já compreendemos a essência do que está acontecendo, e é muito, muito improvável que essa compreensão essencial mude de todo.

Diante desse balanço de probabilidades, escolher a inação tem algo da mesma irresponsabilidade de decidir não vacinar um filho com base nos supostos riscos da imunização –os quais, vale dizer, nem de longe justificam fugir do Zé Gotinha.


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