Folha de S. Paulo


Um crustáceo no divã

O nome do bicho é lagostim-vermelho (Procambarus clarkii), e eu sinceramente não gostaria de ficar a sós com ele em uma ilha deserta.

Não sei o que me dá mais calafrios: a carapaça vermelho-satanás, as garras avantajadas (que parecem perfeitamente capazes de amputar um órgão genital masculino) ou a capacidade de sobreviver por meses fora d'água, característica que ajudou a transformar a criatura, originária do sul dos EUA, numa espécie invasora das bravas.
Por trás desse exterior literalmente casca-grossa, porém, esconde-se um crustáceo sensível. Assim como eu e você, dileto leitor, o lagostim-vermelho também pode sofrer de distúrbios ligados à ansiedade.

Essa é a descoberta de um dos estudos mais interessantes e menos comentados de 2014. Daniel Cattaert e colegas da Universidade de Bourdeaux (França) usaram o animal para demonstrar, pela primeira vez, que invertebrados também são capazes de uma emoção relativamente complexa, como a ansiedade. E verificaram ainda que um medicamento usado desde os anos 1950 para tratar humanos ansiosos pode aplacar a sensação desagradável no peito –ou melhor, no cefalotórax– do crustáceo.

Para chegar a essa conclusão, publicada na prestigiosa "Science", os pesquisadores começaram com um experimento muito simples, colocando os lagostins num labirinto.

Trata-se de um labirinto não muito labiríntico, na verdade. Imagine uma cruz formada por braços de tamanho idêntico. Um dos braços está iluminado; o outro, nas trevas; e o ponto onde os braços se cruzam é uma espécie de lusco-fusco. Considere agora que nossos crustáceos são bichos curiosos e gostam de explorar novos ambientes, mas têm uma preferência por águas escuras.

Isso significa que, numa situação normal, os P. clarkii colocados no labirinto cruciforme acabariam explorando sossegadamente todos os braços da cruz, mas passariam mais tempo nos pedaços escuros do caminho e entrariam nas áreas claras de um jeito um pouco mais ressabiado. De fato, foi o que aconteceu.

Aqui, porém, começa o calvário dos pobres lagostins. Alguns foram submetidos a uma situação estressante (a presença de campos elétricos) e, tempos depois, foram colocados no labirinto em forma de cruz.

Os bichos, então, passaram a ficar muito mais tempo entocados nas áreas escuras –o que bate com a definição clássica de ansiedade, e não com um simples reflexo condicionado pelos campos elétricos, porque o receio se manifestou num ambiente novo e na ausência do estímulo que os estressou originalmente.

O que aconteceria, perguntaram-se os pesquisadores, se um ansiolítico "humano", do grupo dos benzodiazepínicos (que inclui remédios como o Rivotril, o Lexotan e o Valium), fosse injetado nos lagostins?

Bem, os bichos que receberam tratamento continuaram a explorar o labirinto todo, sem receio. Ao analisar como estava a sua química cerebral, os cientistas verificaram semelhanças com o que acontece no cérebro de vertebrados ansiosos, como uma maior concentração do mensageiro químico serotonina.

A mensagem final é clara: nossos comportamentos e nossas emoções, mesmo se aparentemente complicados, possuem uma história profunda que permeia boa parte da árvore da vida na Terra. Pense nisso na próxima vez que alguém disser que é aceitável jogar um crustáceo vivo numa panela fervendo.


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