Folha de S. Paulo


O Êxodo que não estava lá

Em entrevista recente a esta Folha, o cineasta britânico Ridley Scott declarou que sua principal surpresa ao estudar a vida de Moisés para seu novo filme foi descobrir que "ele era um soldado de verdade e um líder do exército egípcio". Bem, a única reação cabível é concluir que Scott não fez a lição de casa direito.

Se tivesse lido o que arqueólogos sabem sobre o Egito e a Palestina da Idade do Bronze, o diretor de "Êxodo: Deuses e Reis" não só teria esquecido esse papo de Moisés guerreiro como teria ficado com sérias dúvidas sobre a existência histórica do profeta e da fuga dos israelitas do Egito –o êxodo do título.

O problema começa com a cronologia. A própria Bíblia afirma que o Templo de Jerusalém foi construído 480 anos depois da saída do Egito. Isso indicaria um êxodo em torno de 1450 a.C. –o que não faz sentido, porque essa época foi o auge do poderio egípcio no Oriente Médio. Canaã, a "Terra Prometida" (mais ou menos o atual território israelense, palestino e libanês), era então uma província do Egito, e assim continuaria pelos 250 anos seguintes.

Isso levou alguns arqueólogos, como o americano William Albright (1891-1971), a propor que a grande jornada das 12 tribos de Israel teria acontecido perto de 1200 a.C. A data casa com a de uma inscrição egípcia, feita a mando do faraó Merneptah, mencionando a presença de um grupo chamado Israel em Canaã. (Curiosamente, o texto da inscrição diz: "Israel está devastado, sua semente não existe mais".)

É a mais antiga menção aos ancestrais dos judeus, dentro ou fora da Bíblia, com datação confiável, mas não diz quase nada sobre eles além do nome e de que teriam sido derrotados pelas forças do faraó.

Dá para argumentar, com alguma razão, que os egípcios jamais registrariam ter levado uma sova dos hebreus (ou melhor, de seu Deus, como diz a Bíblia) em seus monumentos de pedra. Mas também não há sinais arqueológicos da passagem dos supostos 600 mil israelitas –isso contando apenas homens adultos– pelo deserto após o êxodo, ou indícios de que uma fatia tão grande da população teria deixado o Egito de repente, o que decerto teria efeitos econômicos.

Das peças do quebra-cabeças, uma das mais desconcertantes talvez seja a linguística. Parece seguro apostar que uma etnia de escravos que passou 400 anos no Egito falaria... bem, egípcio. Mas o hebraico bíblico é, para todos os efeitos, um dialeto típico de Canaã –com parentesco tão próximo com a língua dos fenícios, ao norte, ou com a dos moabitas e amonitas, a leste, que é muito difícil distinguir um idioma do outro, em especial em suas versões mais arcaicas.

Além disso, a cultura material dos primeiros assentamentos israelitas, nas montanhas da atual Cisjordânia –cerâmica, casas, poços etc.– é típica da zona rural de Canaã. A única diferença que dá para identificar nessa fase é a ausência de ossos de porcos, restrição alimentar que, curiosamente, muitos judeus ainda seguem.

O consenso entre arqueólogos hoje: os israelitas surgiram como um grupo dentro de Canaã que, por algum motivo, adotou uma identidade étnica diferente da de seus vizinhos. Moisés pode até ter sido um profeta desse grupo, cujos feitos foram lembrados nos séculos seguintes. Mas tudo indica que, se existiu, ele não precisou abrir o mar Vermelho: já estava do outro lado mesmo.


Endereço da página: