Folha de S. Paulo


Pelos critérios aplicados a Raupp, talvez mais de cem possam virar réus

"Se Deus é onipotente, pode criar uma pedra que nem Ele próprio consiga carregar?" Qualquer que seja a resposta, eis a morte de Deus como onipotência. Ou não, acudiria São Tomás de Aquino: só se é onipotente apenas sobre as coisas possíveis. E se deve concluir que não há o que Ele não possa fazer, mas apenas as coisas que não podem ser feitas.

Considerações relacionadas ao "Paradoxo da Onipotência" vieram-me à cabeça quando tentava vislumbrar uma saída para o país, sob os auspícios da Lava Jato. Pergunto-me, dado o conjunto da obra, se não estamos caminhando para a conclusão de que Deus está morto –e isso bem pode explicar por que tantos buscam, à direita e à esquerda, demiurgos e milagreiros, com ou sem casaca.

Diga-se, à partida, que algumas vitórias e derrotas já estão consolidadas. O PT conduziu o país à ruína econômica, social e política, mas sai, e isto é estupefaciente, com um ganho moral ao menos. Vê triunfar em todo canto, inclusive entre aqueles que foram às ruas pedir a queda de Dilma, a versão de que todos os partidos, os políticos e os pecados são iguais. Assim falou Lula em 2005, quando veio à luz o mensalão.

Como sabem André Singer ou Celso Rocha de Barros –que têm por que estar satisfeitos com a obtusidade de alguns de seus adversários intelectuais–, o partido que pretendeu se organizar como o Moderno Príncipe sumiu das referências teóricas (e, pois, práticas) dos conservadores. A direita xucra nunca pensou nisso porque é apedeuta.

A crítica de economia política está sendo engolida pelo moralismo mixuruca, pelo proselitismo vulgar, pela ignorância barulhenta, pela estridência oca. O PT mais perigoso para a democracia é o que não rouba, coisa que alguns seres que ficam berrando impropérios e asnices no Facebook e no YouTube, frequentemente a soldo, são incapazes de entender.

Ainda que pareça absurdo dizê-lo, em termos prospectivos, as esquerdas estão mais atentas do que seus adversários às consequências sociais do desastre econômico que elas próprias fabricaram. No ano passado, a economia recuou ao tamanho que tinha em 2010. Imaginem o que aconteceu com a renda dos pobres. Daqui a pouco, chega a hora de falar em esperança. E aí?

Alguma trilha? Alguma luz? Algum São Tomás para nos lembrar de que precisamos criar um sistema que tenha a onipotência sobre as coisas possíveis? Quem ousará defender uma reforma no modelo, a ser feita por políticos –que não podem ser convidados ao suicídio? A economia do tempo das revoluções corta cabeças, mas não consolida nem avanços nem direitos.

Notem: poucos se deram conta das consequências do chamado "Caso Valdir Raupp", de que tratei em meu blog na quarta-feira. O senador por Rondônia se tornou réu no STF porque a Procuradoria Geral da República sustenta que a doação legal que recebeu de uma empreiteira era oriunda da propina na Petrobras. Os senhores ministros lembraram, claro!, que ao MPF caberá o ônus da prova. Ainda não é condenação. Mas réu já é. Está com o carimbo.

Li a denúncia e recomendo que o façam. Por aqueles critérios, qualquer um que tenha recebido doação legal de empresa investigada, esteja evidenciado ou não o liame que justifica a acusação de corrupção passiva, poderá lustrar o banco dos réus. Quantos? Talvez mais de centena. Não por acaso, a razia atinge a elite do Congresso, a quem caberia reformar o sistema, mas de quem se cobra rigor na construção da própria lápide.

Vai se perdendo de vista a ordem das coisas possíveis em benefício daquelas que não podem ser feitas.

Só os delatores riem, vestidos de branco, livres, leves e soltos, como numa propaganda de absorvente higiênico. Enquanto esperam o próximo governo, saboreiam as batatas que Sérgio Moro lhes garantiu.


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