Folha de S. Paulo


A rotina dos 'Jetsons' em uma China tecnológica: até esmola pelo celular

Já imaginou fazer uma transferência de dinheiro pelo WhatsApp? E mais: para aquele pedinte com quem cruza na rua, mas está sem dinheiro no bolso?

A situação é vivenciada pela brasileira Laís Bueno Sachs, 23, estudante de mestrado da Universidade de Pequim. Ela vive há dois na China, onde usa o WeChat até para dar esmola.

Trata-se da versão chinesa do WhatsApp, turbinada por uma série de serviços e facilidades que ainda não constam do cardápio do similar ocidental.

Ela descreve cenas do cotidiano que parecem narradas por um roteirista dos "Jetsons" ou de "Blade Runner".

"Os pedintes colocam o seu QR code ao lado, de forma que eu ou qualquer pessoa com celular possa acessar e fazer a doação usando o WeChat", relata a paulistana, graduada em Relações Internacionais pela UnB (niversidade de Brasília) e bolsista da Yenching Academy of Peking University.

QR Code são aqueles códigos bidimensionais que podem ser escaneados e decodificados por dispositivos móveis com câmera, como smarthphones.

POTÊNCIA CIBERNÉTICA

O fato de um mendigo chinês fazer uso de tecnologia é sinal do quanto o país avançou no rumo de ser também uma potência cibernética.

"A China está deixando de ser o "chão de fábrica" do planeta para se tornar um país gerador de design e propriedade intelectual. Há uma forte reorientação em busca de inovação ocorrendo'", avalia Ronaldo Lemos, em sua coluna na Folha.

Lemos conheceu Laís em Pequim e a convidou para falar da sua experiência para a galera do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) na última passagem da estudante pelo Brasil.

Laís mostrou aos colegas brasileiros como a China vem se tornando o país do WeChat, ao utilizar o aplicativo como rede social, para trocar mensagens eletrônicas, para o transporte urbano, como app de paquera e também meio de pagamento.

"Quase ninguém usa mais dinheiro ou cartão aqui", relata a universitária, em entrevista por meio de uma chamada telefônica do WhatsApp, direto do seu dormitório na Universidade de Pequim, em um prédio no campus compartilhado com outros 120 colegas estrangeiros, vindos de Europa, Estados Unidos e Ásia.

"Todos os pagamentos são feitos por celular via WeChat, um superaplicativo que mistura as funções de WhatsApp, Facebook, Twitter e internet banking e está integrado com a minha conta bancária."

Na apresentação no ITS no Rio, Laís fez uma transferência de um centavo de yuan para um colega para mostrar o quão simples é a tarefa. "O WeChat é tão desenvolvido que surpreende todo mundo: é mais que o WhatsApp", comparou.

NO HOSPITAL E NA FEIRA

A brasileira também usa superaplicativo para agendar consulta em um hospital público de saúde e também na feira.

Basta sacar o celular da bolsa para pagar as frutas que compra na barraquinha de uma vendedora que provavelmente do campo para a capital chinesa há pouco. A feirante de origem humilde maneja seu smarthphone também para checar o recebimento da compra de 16 yuans (R$ 8 reais), por exemplo.

"É uma vida muito mais tecnológica do que no Brasil. Compro tudo pela internet, até o pão que vai ser entregue no dia seguinte. Resultado, minha vida toda aqui está no celular."

Para acessar o serviço de bicicleta compartilhada, Laís fez um depósito do equivalente a R$ 100 para um ano. Quando decidi pegar uma bike para se locomover por Pequim, basta escanear o código para receber uma senha para abrir o cadeado. Paga por uma hora de uso 25 centavos. No final de semana, o serviço é gratuito para os assinantes.

A tecnologia se tornou uma ferramenta importante para enfrentar o caos de uma megalópole, especialmente para um estrangeiro que não domina o chinês.

"Não dá para ficar sem celular, pois está tudo integrando. Pagamentos, mapas. Para quem não fala a língua, pode-se usar um tradutor. Não sei como as pessoas sobreviviam antes de ter um dicionário no smartphone."

Laís se surpreendeu também com o acesso à internet em terras chinesas, onde Facebook, Google, Twitter e Instagram são proibidos. "Os planos das operadores são bem baratos. A qualidade do sinal é boa e a preço acessível. Por isso, as pessoas estão mais conectadas que no Brasil."

Por um pacote 4G de internet móvel, que inclui 200 minutos de ligação para telefone fixo ou celular por mês, Laís paga o equivalente R$ 100 por ano.

PROIBIDOS

Para conseguir acessar Facebook e os demais "proibidões", Laís compra um VTN, serviço que vai redirecionar o seu IP para outro país. "Assim, consigo falar normalmente pelo WhatsApp, como estamos fazendo agora durante a entrevista", ressalta a estudante.

Problemas de conexão são esporádicos e a mão da censura, às vezes, torna-se visível. "Durante o congresso do Partido Comunista em outubro, o governo endureceu a censura a e-mails, Facebook, Twitter, Google e até mesmo WhatsApp", contata a brasileira. "Desde então, minha comunicação via e-mail tem deixado a desejar."

A vida digital dentro da China, no entanto, acabou influenciando os planos de estudo de Laís. Experiências cotidianas que fizeram a universitária redefinir o tema de sua dissertação de mestrado.

O escolhido foi "New financial technologies in China and their implications to inclusive economic growth". Em português: "Novas tecnologias financeiras na China e suas implicações para o crescimento econômico inclusivo". E em chinês: -ý„°ÑÑ€ÊvùÏNž„qÍ.

"É muito melhor pesquisar sobre um assunto que desperta interesse no Ocidente. É mais abrangente do que estudar os investimentos chineses no Brasil, minha pesquisa original."

A brasileira quer encontrar respostas para questão como: As novas tecnologias financeiras podem ser usadas como uma ferramenta para impulsionar o crescimento econômico inclusivo? É possível transferir essas tecnologias para outros países em desenvolvimento?

"Ao longo do trabalho, faço um estudo comparativo entre Fintechs no Brasil e na China", explica. Ela está analisando casos como Alipay, maior plataforma do tipo no mundo, com mais de 450 milhões de usuários, entre outros.

"Vou analisar mecanismos de pagamento pelo celular, como eles surgiram na China e quais as políticas implementadas para inocentar ou que atrapalharam a consolidação desses métodos."

Laís quer entender também como o setor privado, especialmente os bancos, reagiu às inovações.

A brasileira sabe que vive em uma bolha tecnológica e também está certa de que a China está à frente em relação a outras superpotências.

O país ocupa segundo lugar no número de patentes registradas, ficando atrás apenas dos EUA. Em nanotecnologia, a China já está no primeiro. Em patentes de robótica, está em segundo, só atrás do Japão. " O futuro está aqui", aposta a brasileira.


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