Folha de S. Paulo


'Cracolândia virou flá-flu ideológico', diz ator e escritor ex-usuário de crack

O ator e escritor Márcio Américo viveu três dos seus 53 anos na cracolândia. Em 2000, começou a frequentar as ruas do centro de São Paulo onde se reúnem usuários e traficantes de crack. "Limpo" há mais de uma década, ele relata como o apoio da mulher e uma internação foram a chave para sair da dependência.

Com o olhar de quem já foi visto como um "zumbi", ele critica o discurso do prefeito de SP, João Doria (PSDB), e a "desastrosa" operação policial e de "limpeza da área", mas também bate em ativistas que usam a hashtag #resistecraco. "A cracolândia virou combustível para o flá-flu ideológico", afirma.

Autor do livro "Meninos de Kichute", o escritor e dramaturgo acaba de estrelar o longa "Magal e os Formigas" (2016) e exerce a veia de comediante em seu canal no YouTube, com o personagem Pastor Adélio. Em um vídeo recente, o ator faz um desabafo a sério sobre as polêmicas que envolvem a cracolândia.

A seguir, o relato em primeira pessoa do artista multimídia que estreia neste sábado (3) o espetáculo interativo "Deus É Humor" que fica em cartaz no Teatro Commune até 8 de julho, sempre aos sábados, às 16h.

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"Frequentei a cracolândia por três anos. Comecei em 2000, quando passava uns dias, depois voltava para casa. Mas sempre retornava. Há dez anos, estou limpo, superei essa desgraça.

Dizer que todos ali são zumbis é reducionismo que leva à exclusão. Não se trata de uma massa de gente. Dentro da cracolândia tem individualidades e especificidades.

Na minha época, conheci professores, atores, bailarinos, médico, advogado, patrão e até vereador. Há também os 'homeless' (sem-teto), aqueles que não têm família, estão sozinhos, um problema social enorme.

Há os frequentadores habituais e os eventuais. É preciso entender que o atrativo maior da cracolândia é o ritual quase religioso que caracteriza o uso do crack e vai além da dependência.

Não é só o crack que vicia; a cracolândia, também. Cria-se uma comunidade de malucos, que ficam horas limpando seus cachimbos, fumando as cinzas, numa noia coletiva. Os que olham de fora só veem droga e dependentes. Mas a cracolândia é uma comunidade pulsante, viva.

É preconceito dizer que é formada de zumbis sem atitude. Os usuários de crack são ativos, mas as atividades deles são restritas à compra e ao consumo da droga. Não ficam o dia inteiro na cracolândia. Saem em busca de dinheiro para comprar a droga, armam esquemas.

Por isso, a última operação policial para desocupação da área foi desastrosa. Não se despejam viciados, pois eles não têm casa. Não há despejo para quem já mora na rua. Dessa forma, ficou muito claro a falta de planejamento. A cracolândia levou 20 anos para ser o que é hoje e não se acaba com ela em um dia, como declarou o prefeito.

Ela só fez mudar de lugar. Faltou colocar uma placa: 'Estamos atendendo em novo endereço na praça ao lado'. Acabar com a cracolândia é um trabalho lento, de cadastrar as pessoas, ver quem tem família e quem não tem.

BATALHA IDEOLÓGICA

A recente operação na área despertou nas pessoas o que elas têm de mais egoísta. É combustível para discursos ideológicos à esquerda e à direita. Ninguém está interessado em resolver de fato o problema do dependente químico, que acaba ficando no meio do flá-flu ideológico.

Também é absurdo esse ativismo de colocar hashtag #resistecraco. Resistir a quê? A cracolândia só é boa para traficante. Quem ganha com a manutenção daquela situação é o tráfico. O que o ativista faz efetivamente pelo dependente? Nada.

Defendo que temos que limpar a área, mas isso não é do dia para a noite. É preciso liberar os espaços públicos, que são áreas de convívio. Mas não se pode tirar os dependente de lá como se fossem lixo, debaixo de tiro de polícia e muito menos derrubar casas sem verificar antes que não há gente dentro.

No entanto, eu acho a internação de dependentes necessária por três motivos. Primeiro, para ajudar o cara que está na rua, perdendo a sua saúde. Segundo, para dar segurança, tranquilidade e mobilidade para quem mora na região e também para dar paz à família do dependente, que adoece junto com ele.

Em terceiro lugar, a internação é uma esperança para o dependente. Pode representar uma tomada de consciência. Eu só consegui sair dessa porque minha mulher, Renata, acreditou e viu que existia saída. Foi ela que me encaminhou para um tratamento numa fazenda no Paraná.

Com o apoio da família e bons métodos terapêuticos, comecei a receber informações e a entender que eu não era um filho da puta, um irresponsável. Eu tinha uma doença.

ALCOOLISMO

Ninguém começa com drogas usando crack. É a última, normalmente. A primeira é o álcool. Comecei aos 4 anos tomando medicamentos fortificantes que já continham álcool.

A Organização Mundial da Saúde diz que há predisposição genética para alcoolismo e dependência química. Na adolescência, tinha os desafios auto afirmativos e eu acabava caindo como um pato e bebendo muito.

Depois, veio a influência da literatura dos anos 80, dos poetas e escritores. Para mim, eles eram talentosos por usar drogas. Achei que este era o caminho para ganhar o Nobel de Literatura e acabei na cracolândia.

O crack é a droga mais cara do planeta. O sujeito toma uma dose de heroína e fica quatro horas sem usar, pois se usar mais tem overdose e morre. Com a cocaína é o mesmo. Já o crack, que é o lixo da cocaína, não tem overdose, mata aos poucos. O cara usa todos os dias, toda hora. Não tem fim.

O efeito é muito rápido. É um curto-circuito no cérebro que dura três segundos. É ir ao céu e voltar. Por isso, falo para meus filhos: 'Droga é muito bom'. É viciante.

É a primeira coisa que temos de admitir quando queremos alertar os jovens sobre os riscos. Depois fica ruim, pode matar. É só síndrome persecutória.

Já passei por clínicas de recuperação, salas de auto ajuda, Narcóticos Anônimos e posso dizer que é impossível tratar e recuperar dependentes sem apoio familiar.

Muitos perderam emprego, precisam de requalificação profissional e resignificar a própria vida, ampliar o repertório pessoal e a autoestima.

RECUPERAÇÃO

A taxa de recuperação nas clínicas e fazendas terapêuticas mais reconhecidas, entre aqueles que se internam voluntariamente ou foram convencidos por familiares, é bem baixa, em torno de 7%, 8%. Imagina para quem é levado à força. A taxa é zero por cento. Já vi muitos dizerem que querem morrer usando crack.

Em vários casos, tem de haver internação coercitiva mesmo. Mas o bom de toda essa polêmica foi ter colocado o problema em discussão. Agora, todo mundo fala da cracolândia."


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