Folha de S. Paulo


O pai de la Mancha: ator que faz Dom Quixote reencontra filho pela internet

Intérprete de Dom Quixote e Miguel de Cervantes no musical "O Homem de La Mancha", Cleto Baccic, 47, tomou emprestado um trecho de "Miss Saigon", um dos maiores sucessos do gênero, para ilustrar um momento especial de sua vida.

"Look at him, It's my son [Olhe para ele, é o meu filho]", cantou ele, ajoelhado diante de Victor Han, ao apresentar o jovem de 21 anos para alguns colegas do espetáculo na sala de aquecimento de voz no Teatro Alfa, na noite da quinta-feira, 4.

Meia hora depois, o ator subiria ao palco para 25ª apresentação desta nova temporada, tendo na plateia o garoto que venceu mais de 30 horas de viagem desde Seul, na Coreia do Sul, para reencontrá-lo no Brasil.

Pai e filho passaram dez anos sem contato, até que o garoto, que foi morar em Seul, terra natal da mãe, após divórcio litigioso, achou Baccic numa rede social. "A gente se reencontrou graças a internet. A cada reportagem minha que saía, eu imaginava que meu filho pudesse me procurar. Foi uma emoção ele chegar por esse caminho", conta o pai, sobre o papo virtual há três anos.

"Vieram lágrimas nos dois, pelo muito que a gente não teve, como as típicas brincadeiras de pai e filho. Victor queria fazer queda de braço comigo. Aquela coisa: 'Eu vou ganhar de você, papai!'"

O primeiro reencontro cara a cara foi no ano passado, quando Baccic programou uma parada na capital sul-coreana após fazer um concerto com a colega Sara Sarres na China.

CADÊ O BEBÊ?

"Nos encontramos no hotel e estávamos os dois tímidos", recorda-se. "Achei estranho aquele adolescente, metido a boy. Cadê aquele nenenzinho lindo do papai, as bochechas gordinhas, a pele lisa? Quem chegou foi um roqueirão, cabeludo."

A última lembrança era a do garotinho de oito anos, que dormiu abraçado ao pai em um quarto de hotel em Vila Velha, no Espírito Santo, sem que ambos soubessem que se tratava de uma despedida.

Doze anos depois, lá estava diante dele um jovem músico de 20 anos, que traz na face de traços orientais o queixo quadrado, marca registrada dos Baccic, originários da ex-Iugoslávia que no Brasil ganharam sangue nordestino, português e italiano.

"Temos a mesma inclinação artística. Victor é multi-instrumentista, toca baixo, bateria, guitarra e violão", diz o pai, ao contar que o filho fez uma turnê no Japão com sua banda. A proximidade recém-adquirida é cultivada por horas de papos por telefone e chats do WhatsApp.

A saudade do bebê aparece na fala do pai, quando Baccic diz para o homenzarrão: "Filho, pega o cartão do papai", diante do desejo de Victor de tomar um café para espantar o cansaço.

O convidado especial da noite chegou por volta das 20h ao Teatro Alfa, ainda sob efeito do jet lag.

Enquanto Baccic hidrata as cordas vocais e começa a se maquiar e a se vestir no camarim, o clima é de descontração. Pai e filho se postam lado a lado para ver quem é mais alto. Com seu 1m87, o ator ganha por pouco.

No caminho entre a sala de aquecimento e a coxia, o protagonista de "O Homem de La Mancha" vai apresentando o filho ao elenco. "Olha o cabelão dele", aponta Baccic. Um colega vestido como um dos loucos da Colônia Juliano Moreira, cenário da montagem dirigida por Miguel Falabella, replica: "Tô me sentido velho".

ARTISTA COMO O PAI

Um outro pergunta se não teria encontrado Victor na estreia da primeira temporada no Sesi. "Não, a gente não se viu por 12 anos", explica o rapaz, em um português quase sem sotaque. Ele fala também coreano, japonês e inglês. E conta que além de músico pensa em ser ator. "Já gostava de musical antes de saber que era isso que meu pai fazia."

Ao subir as escadas para ocupar um lugar de honra na plateia, Victor conta que foi com Baccic assistir em Seul ao musical "Hedwig". Um momento marcado pela compra de dois anéis de prata, nos quais mandou registrar a data: 26 de março de 2016. "Meu pai perdeu o dele, porque tem que tirar para entrar em cena, mas eu vou dar o meu pra ele."

Enquanto procura seu assento, Victor diz não saber se vai conseguir entender o enredo do musical. Não leu Cervantes e se mostra ansioso para ver o espetáculo pelo qual o pai ganhou o prêmio de melhor ator de musical pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), em 2014.

"Estou me sentindo de novo na estreia", diz o ator.

Alojado na terceira fileira central, o filho espectador mantém o olhar fixo no palco, quando Cervantes/Baccic entra para sua primeira cena: a chegada ao manicômio. "Há remédio para tudo na vida", diz ele, ao fiel escudeiro Sancho Pança.

A loucura de todo poeta é justificativa para devaneios em cena e para batalhas contra moinhos de ventos. Quem encarna na pele do Dom Quixote é um ator que traz na própria biografia vários lances quixotescos.

Baccic sempre foi o protagonista das brincadeiras teatrais no quintal dos avós maternos em Garanhuns (PE), quando atuava e dirigia os primos na infância. Aos 20, lançou-se na aventura de sobreviver por três anos no Japão como dançarino de lambada, na esteira da febre mundial.

Na volta ao Brasil, era também Quixote quando fazia números empurrando carrinho de bebidas no corredor de aviões, durante os oito anos que foi comissário de bordo da falida Vasp. "Seu lugar não é dentro do avião. Você é ator", disse-lhe um passageiro. Foi no curso preparatório que conheceu a aeromoça asiática com quem casou e que se tornaria mãe do seu filho.

A VIDA COMO ELA É

No palco do Teatro Alfa, o cavaleiro errante de Cervantes declama: "Fatos são inimigos da verdade". É como se Baccic dialogasse com o filho pródigo, apresentado ao homem de La Mancha, aquele cuja missão é sonhar o sonho impossível, voar com as asas cortadas, correr atrás de sonhos desfeitos.

A cena em que Dom Quixote declara seu amor por Alfonsa/Dulcineia (Sara Sarres) provoca lágrimas em Victor. "O mundo vai saber que um homem cumpriu o seu papel", canta Baccic, vozeirão de barítono.

É um pai de la Mancha que brada: "A maior de todas as loucuras é ver a vida como ela é, e não como ela deveria ser".

Após os acordes finais e em meio ao aplausos, Victor solta um "Uhu!", bem ao seu estilo rock'n'roll. É o reconhecimento do talento paterno por um filho que não o viu brilhar em "Cats", primeiro sucesso de uma carreira que demorou a engrenar.

"Aos 30, eu perdi mulher, filho, a Vasp falindo, emprego acabando", recorda-se ele do momento em que decidiu investir de novo na carreira de ator. No instável mercado de musicais, Baccic criou o Ateliê de Cultura, produtora que desenvolve seus projetos. "O dia a dia do ator é de muitas negativas", diz. Ele não passou nas audições de "Fantasma da Ópera" e "Miss Saigon".

"Homem de La Mancha" é o ponto alto da carreira. "É o espetáculo da minha vida, mas não quero ser visto como o eterno 'Homem de la Mancha'. Quero outros papéis."

O ator e produtor que venceu seus próprios moinhos de vento ganha mais uma vez os aplausos finais de uma plateia que naquela noite ocupa metade do teatro.

Acendem-se as luzes, Baccic agradece os patrocinadores e com voz embargada diz que aquele foi um espetáculo especial. "Estou emocionado hoje", encerrou o discurso, acenando para Victor e deixando rapidamente o palco.

O filho captou a mensagem. "Entendi uns 60%", calcula. Mas a emoção de ver o pai em um papel tão emblemático foi de 100%, conclui o herdeiro da sensibilidade artística dos Baccic.

De volta ao camarim, um abraço longo de pai e filho fecha o script particular. "Estou todo melado", desculpa-se o ator, entre risos e lágrimas, com as vestes suadas após 1 hora e 50 minutos sob os holofotes.

EMOÇÃO FINAL

O choro, até então contido, derrama-se pelas faces de ambos. As irmãs de Baccic, que também fazem parte do elenco, juntam-se aos dois para um momento em família. "Sou sua tia mais velha", apresenta-se Clarty Galvão, 49, uma das criadas do espetáculo. Noedja Baccic, 46, já despida da personagem de mulher do hospedeiro, também abraça o sobrinho.

Dali a pouco, olhos marejados dão lugar a sorrisos e brincadeiras. Clarty aponta para o boneco de Dom Quixote/Baccic na lojinha do teatro: "Olha o papai!"

Victor escolhe souvenirs e posa para fotos com a família brasileira, enquanto o pai se despede de fãs. Fim da longa jornada. "É um novo começo", resume o Dom Quixote de carne e osso, com um sorriso largo. A vida supera a arte.


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