Folha de S. Paulo


Lobby de hotel: a arte de fazer amigos do Brás aos Jardins, de Paraty ao STF

Aos 10 anos, ele ganhava o próprio dinheiro como engraxate em Belo Horizonte. Aos 17, mudou-se para São Paulo em busca de oportunidades. Aos 69, morreu a bordo de seu avião particular a caminho do paraíso privê que construiu em Paraty (RJ).

O garoto mineiro virou vendedor de chapas de compensado de madeira na rua do Gasômetro, no Brás, primeiro degrau de uma trajetória de empreendedor que levou Carlos Alberto Filgueiras a se tornar referência no ramo de hotelaria de luxo no Brasil.

A trajetória de "self-made man" do dono do grupo Emiliano foi tragicamente interrompida em 19 de janeiro pela queda do avião que matou também o ministro Teori Zavascki, então relator da Operação Lava Jato no STF (Supremo Tribunal Federal).

FAZENDO HISTÓRIA

No dia em que entraria como coadjuvante para a crônica de acidentes aeronáuticos que marcam a história recente da República brasileira, Filgueiras chegou ao hangar do Campo de Marte em São Paulo por volta das 10h.

Foi neste horário previsto para a decolagem que ele trocou mensagens no grupo de WhatsApp da família com a filha caçula, Carolina, 39. "Meu amor, estou indo para Paraty", escreveu. "Aproveita, papai", respondeu ela, estranhando o fato de ele viajar para a fazenda à beira-mar numa quinta-feira e não às sextas, como de costume.

À espera do convidado ilustre, o avião só decolaria às 13h. "O ministro se atrasou. Se tivessem saído no horário, o teto seria outro. Em um instante o tempo virou", lamenta o advogado Carlos Emiliano, 42, segundo dos quatro filhos do empresário.

As conclusões preliminares sobre as causas do acidente levam a crer que as forças da natureza conspiraram para a "fatalidade" que gerou comoção nacional.

Gustavo, 40, filho de Filgueiras à frente dos negócios hoteleiros da família, também fornece sua visão do acidente, com base em relatos colhidos após a tragédia.

"O piloto estava em um momento de aproximação visual, com o trem de pouso e flaps abertos. Veio um temporal e não se conseguia ver um palmo à frente."

Às péssimas condições meteorológicas se somou uma decisão fatal do experiente piloto, também morto no acidente. "Ele tinha que ter subido e refeito o procedimento. Fez uma volta baixa, bateu a ponta da asa e entrou voando na água", descreve.

FAZENDA PARADISÍACA

Os quatro passageiros –além de Teori e Filgueiras, estavam no King Air C90 a massoterapeuta Maíra Panas, 23, e sua mãe, Maria, 55– nunca chegariam ao paraíso particular do dono da aeronave.

Filgueiras recebia seus convidados na fazenda Itatinga, propriedade de cana de açúcar no século 18, com a frase "Tudo acontece conforme a natureza" escrita em uma placa na entrada.

Assim sucedeu. Nuvens carregadas e chuva forte turvaram aquele que deveria ter sido um fim de semana prolongado de lazer e descanso.

O grupo sui generis iria usufruir da conhecida hospitalidade do empresário mineiro, que tinha entre clientes habitués do Emiliano a top Gisele Bündchen, o cantor Gilberto Gil, políticos e autoridades dos Três Poderes.

O ministro Teori seria apresentado às delícias e às mordomias já apreciadas por outros hóspedes do Emiliano, como o advogado João Francisco Neto, 32, que esteve em Paraty diversas vezes a convite de Filgueiras.

REIS E RÉUS

"Carlos Alberto era o melhor amigo de todos os amigos. Andava com reis e réus", define o criminalista. Ele defendeu o dono do Emiliano em uma ação por crime ambiental em Paraty.

Bem longe dos tribunais, os convidados da fazenda são alojados em uma casa de 1785, reformada com maestria por Filgueiras. "Meu pai adorava receber e impressionar os hóspedes com o seu talento de construtor e apreciador das boas coisas da vida", diz Emiliano.

O anfitrião gostava de servir peixes frescos, pescados ali mesmo, em almoços regados a vinhos e boa música, cercado dos 20 cachorros que mantinha na propriedade envolta pela Mata Atlântica.

Filgueiras propiciava aos visitantes passeios de barco e visitas à ilha das Almas, onde reformou uma casa de para os filhos, objeto de uma das ações movidas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro contra o empresário.

A caçula Carolina recorda-se com emoção do último almoço na ilha com o pai e um grupo de 14 pessoas. "Ele estava curtindo mais os amigos, os netos, os filhos. Paraty era o lugar de que ele mais gostava no mundo. Tinha fascinação pelo mar."

Ela segura o pranto para o concluir: "Se fosse pensar deixando de lado as emoções, foi a melhor forma de meu pai se despedir da vida. Ele não se deu conta de que o avião estava caindo. Não teve pânico nem sofreu."

SIMPLES E SOFISTICADO

Um dia antes da viagem, Filgueiras telefonou para Neto para saber notícias da mãe do criminalista que havia sido operada. O tipo de atenção que teria conquistado Teori. Na missa de sétimo dia, ao prestar uma homenagem, o advogado lembrou do jeito cativante ao mesmo tempo "simples e sofisticado" de Filgueiras.

Ele costumava se sentar no lobby ou no bar para beber e jogar conversa fora com os hóspedes."Foi assim que o conheci e logo ele me chamou para tomar uísque no apartamento dele, que ficava no prédio ao lado", recorda-se.

Neto provou da hospitalidade de Filgueiras ocupando um dos dois outros imóveis que o dono do Emiliano mantinha no mesmo edifício, destinado a clientes especiais quando o hotel estava lotado.

É um enredo parecido ao que teria aproximado o discreto Teori do efusivo Filgueiras. Uma amizade que nasceu também nas dependências do Emiliano em São Paulo, onde o ministro se hospedou durante o tratamento de câncer da mulher na capital paulista. Proximidade que aumentou após a viuvez do magistrado em 2013.

"Meu pai sabia ouvir, era divertido, nada protocolar. Trazia vida e energia para o ministro", diz Gustavo Filgueiras. Lava Jato seria um tema proibido. "Ele nunca tocou no assunto com Teori. Dizia que morria de vontade, mas nunca perguntou nada."

A lista de passageiros do voo fatal mostra, segundo o filho, a capacidade do pai de acolher igualmente VIPs e plebeus. Em meio à comoção pela morte do relator da Lava Jato, surgia especulações sobre o perfil da jovem universitária contratada por Filgueiras para tratá-lo de um problema no nervo ciático, segundo nota do hotel.

Diretor-executivo do grupo dono do avião, Gustavo esteve com a irmã da massoterapeuta há alguns dias em Angra, quando foram prestar depoimento sobre o caso. "Vi a dor da família da Maíra por ter visto a imagem dela arruaçada publicamente."

Para o filho, o fato de o pai ter convidado também a mãe da jovem seria prova da natureza profissional do relacionamento.

SEMANA DE RELAX

O grupo iria ficar em Paraty por uma semana. "Eles só voltariam a São Paulo após o feriado, na quarta-feira seguinte", explica o moveleiro Eric Soares, 58, também convidado pelo dono do Emiliano para se juntar aos outros três convidados e ocupar o último lugar vago no avião. "Não pude embarcar na quinta e só ia pra lá no sábado."

Segundo Soares, a estada prolongada explica o convite feito à massoterapeuta. "Carlos Alberto estava sentindo muitas dores na coluna e tinha medo de ter outra crise durante aquela semana fora."

Fornecedor de móveis de design do Emiliano, ele privava da intimidade do dono do hotel. Formavam um trio inseparável com Charles Cosac, diretor da Biblioteca Mário de Andrade. "Ele foi o melhor anfitrião que conheci na vida", resume. Um "bon-vivant" que podia tanto beber champanhe com um figurão da República quanto tomar cachaça com um pescador.

DE SELVA EM SELVA

De origem humilde, Filgueiras era filho de um dono de um boteco na capital mineira que começou a trabalhar desde muito cedo em detrimento dos estudos. O empresário concluiu o segundo grau fazendo supletivo.

Em São Paulo, foi trabalhar numa madeireira, mas logo em seguida abria uma própria. Seu espírito aventureiro o levaria a Serra Pelada em 1979. "Mas o crescimento dele foi com incorporação imobiliária e não como garimpeiro", diz o filho Gustavo.

Filgueiras foi um dos 100 mil brasileiros que pegaram carona naquela corrida do ouro em plena região amazônica. Comprou um barranco no maior garimpo a céu aberto do mundo. Experiência registrada em fotos nas quais aparece em meio ao formigueiro humano de garimpeiros que peneiravam da lama o metal precioso.

Teria encontrado a riqueza, no entanto, na selva de pedra. Lançou mais de cem prédios em São Paulo e também no Guarujá e em Campos do Jordão, com variados sócios. Um deles foi o cantor Roberto Carlos, parceiro na empreitada de construir um flat nos Jardins, nos anos 1990.

O projeto desandou e os dois acabaram se desfazendo da empresa R.C. & C.A. Do fracasso nasceu o maior sucesso empresarial de Filgueiras, que transformou o edifício no primeiro hotel butique de São Paulo, localizado na sofisticada rua Oscar Freire.

Ele inaugurou o Emiliano em 2001 com serviços de altíssimo luxo e diárias que custavam o dobro dos concorrentes tradicionais. "Todo mundo tachava ele de louco", recorda-se Gustavo, que tem pela frente o desafio de fazer prosperar os negócios deixados pelo pai aventureiro e visionário.


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