Folha de S. Paulo


A rotina entre ficção e realidade de um médico de família que virou roteirista

Cena 1: Dr. Paulo vai à casa da paciente que não responde ao tratamento de diabetes e descobre que a senhora esconde debaixo da almofada do sofá as pílulas que deveria tomar.

Cena 2. Dr. Victor atende, na sexta-feira (23), dona Ângela Medina, 72, diabética há mais de quatro décadas. "Ela é uma paciente modelo. Já usa insulina e segue o tratamento exemplarmente. Nunca teve complicações mais graves", diz o médico que a acompanha desde 2012.

A primeira cena faz parte do episódio de estreia de "Unidade Básica", série do Canal Universal estrelada por Caco Ciocler no papel de um médico de família que vive os desafios de prestar assistência de qualidade no SUS (Sistema Único de Saúde).

A segunda é a rotina do baiano de 28 anos, que há quatro bate ponto na UBS (Unidade Básica de Saúde) Brás, na zona leste, onde atende uma média de 20 pacientes por dia, 500 por mês.

Ficção e realidade se misturam quando o médico tira o seu jaleco branco e veste o figurino de escritor.

Valois é um dos três roteiristas da equipe comandada por Newton Cannito, idealizador da série junto com a atriz Ana Petta, a outra protagonista do seriado médico que estreou em setembro.

"Foi bem emocionante ver a série no ar, apesar de eu ter acompanhado a gravação de algumas cenas no set", relata o médico e roteirista.

A primeira emoção foi entrar na UBS da ficção. "Eles conseguiram construir algo bem parecido com a realidade", completa Valois.

Ele está concluindo ao mesmo tempo pós-graduação em medicina da família e comunitária e outra em roteiro.

Graduado pela Universidade Federal da Bahia, ele se mudou para São Paulo para fazer pós pela Unifesp e concluir especialização pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Encontrou tempo para aprender mais sobre a arte da dramaturgia em um curso ministrado por Cannito. Foi ali que se animou a encarar o mestrado em roteiro audiovisual pelo Senac.

"Além de ótimo médico, Victor é ótimo dramaturgo. Ele ajudou a efetivar a proposta da série: conciliar a medicina com as histórias e usar a narrativa como técnica de cura", diz Canito, sobre o pupilo.

Enquanto vibra com o primeiro trabalho na tevê, Valois comemora a volta de um texto seu aos palcos de São Paulo. "Te Amo, Franco Roo!", peça que escreveu com quatro amigos dramaturgos, retorna em curtíssima temporada no Teatro de Arena, entre os dias 7 e 16.

DRAMATURGIA MÉDICA

O médico e dramaturgo transformou sua paixão pela arte em objeto de estudo. Nos últimos dois anos, ele se debruça sobre dramaturgia médica, tema de sua tese.

Analisa casos como o da novela "Laços de Família" (2000), da Rede Globo, que retratou o drama de uma paciente com câncer, vivida por Carolina Dieckmann.

Já entre as badaladas séries médicas americanas, ele avalia "House", sucesso da Fox com o ator Hugh Laurie no papel principal, como uma "série policial travestida de série médica".

"É excelente, bem construída, centrada na investigação da doença", diz. "Do ponto de vista de dramaturgia, é interessantíssima, mas está bem distante do que o médico vivencia na sua realidade. Mesmo nos hospitais de referência e em universidade não tem tantas doenças raras no dia a dia."

Valois qualifica "House" de "caricatural", apesar de contar com um suporte importante de uma assessoria de profissionais médicos.

Esta é tarefa dele também na equipe de "Unidade Básica", a do profissional de saúde que está na equipe para dar veracidade às situações da rotina médica, tema central da série.

A cada episódio é eleita uma doença, como o diabetes, na estreia, passando por HIV, transtornos mentais e saúde da criança.

Os diagnósticos vão se casando com os dramas cotidianos de personagens que encontram no posto de saúde da ficção profissionais comprometidos com um ideal de saúde integral.

ATENÇÃO INTEGRAL

Mesmo com as deficiências do SUS, é o tipo de medicina que atraiu o médico baiano para o atendimento público em São Paulo desde 2012.

"Tenho interesse em trabalhar com oncologia no futuro, mas me especializei em medicina da família, que me dá base e me aproxima do ideal da integralidade, de poder olhar para o paciente como um todo", explica Valois.

O médico cumpre uma rotina de 40 horas semanas na UBS Brás, em dois turnos das 8h às 19h, de terça à sexta.

Além do atendimento no consultório, faz visitas domiciliares, acompanhado de agentes de saúde, um dos pontos que enriquece o seu trabalho, assim como as tramas de "Unidade Básica".

É quando a saúde bate, literalmente, à porta dos pacientes. Um mergulho na realidade que tantas vezes é a chave de diagnósticos mais complexos.

Na agenda carregada da UBS real, Valois passa pela clínica geral, por consultas de pré-natal, atendimentos de pediatria e acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.

"Minha equipe é responsável pelo acompanhamento de cerca de 4.000 famílias. Entre os pacientes, muito são migrantes nordestinos, que se mudam muito. O desafio é manter vínculos", explica o doutor.

O número de consultas pode chegar a 30 em dias mais agitados. "Temos como métrica de produção 416 consultas ao mês, no mínimo. A demanda é muito grande. O desafio é ampliar acesso sem perder a qualidade; cumprir a meta, sem fazer atendimento corrido."

Foi com esse olhar que o profissional do SUS na ficção desvenda o que está por trás de um diabetes com complicações.

Na pele de Dr. Paulo (Caco Ciocler), o veterano da UBS cutuca a colega Laura (Ana Petta), recém-chegada à unidade, ao criticar os "especialistas que não veem que ali na frente tem uma pessoa".

A relação médico/paciente é colocada na berlinda em diálogos nos quais o protagonista de "Unidade Básica" critica a "empurroterapia".

É a prática de passar adiante os problemas, sem se envolver ou tentar resolver de fato o drama do indivíduo que busca respostas para seus problemas de saúde.

Com muita conversa e observação, o médico da ficção descobre um câncer na tireoide da filha da paciente diabética, exausta com as idas e vindas do tratamento da mãe.

É também ao visitar a casa da família que ele mata a charada da falência do tratamento e chega à conclusão de que a paciente está desistindo da vida, algo que na correria de consultórios abarrotados do SUS costuma passar batido.

O episódio tem final feliz na ficção, com mãe e filha curadas e agradecidas aos médicos da UBS.

A humanização do atendimento perpassa os vários episódios da série.

"Os dramas vão sendo explicitados e fica evidente o trabalho de investigação do médico", diz Valois. "Não estamos diante apenas de órgãos, tecidos e células. Temos que analisar as relações, a situação de moradia. São muitas as revelações ao se olhar para paciente como um todo."

A série traz um debate importante que é a eficácia do atendimento básico de saúde. "A medicina da família e comunitária é resolutiva", atesta o médico do UBS Brás.

Segundo ele, o desafio é fazer as pessoas entenderem que 80% dos problemas de saúde conseguem ser resolvidos em uma unidade básica. "Boa parte dos casos não vai precisar ser encaminhada para especialistas. Não necessitam de atenção secundária e terciária."

É claro que pacientes com câncer vão ser encaminhados para um oncologista. A realidade, então, começa a ficar mais dramática que a ficção, diante dos gargalos do SUS.

Entra em cena o drama real de milhares de brasileiros: a fila de espera para cirurgias e exames complexos, como uma tomografia. "Sofremos diante da angústia de não conseguir dar uma resposta imediata para o paciente que bate na nossa porta", diz Valois.

São temas atuais, que apontam o dedo para as feridas de um sistema de saúde marcado pela falta de recursos no serviço público e pela mercantilização dos planos de saúde e hospitais privados.

"Mostramos na série pessoas que têm convênio médico e que procuram a UBS. O SUS não é uma medicina para pobre, a classe média começa a utilizar mais o sistema público. Ao reconhecer o espaço como seu, vai exigir melhorias", acredita o médico de família.

Na pele de roteirista, Valois vivenciou dramas bem pessoais. No último dos oito episódios da temporada de estreia, o médico vira paciente.

"É um dos momentos mais bem acabados em termos de roteiro. O fato de o médico estar doente e passar para o outro lado da mesa me tocou muito", diz.

Ele sabe bem o impacto de uma doença crônica desde os 18 anos, como portador de uma cicatriz renal, resultado de infecções passadas.

Uma das sequelas é pressão alta precoce, que Valois precisa controlar com medicamentos e dieta equilibrada, recomendações que passa também a dona Edith, 60, paciente hipertensa que está na sua rotina de visitas domiciliares.

Uma empatia e um contato continuado que rendem boas histórias e bons resultados para a saúde. "Nos colocarmos no lugar do outro nos humaniza e nos faz médicos melhores." Os pacientes da UBS Brás e os fãs da série agradecem.


Endereço da página:

Links no texto: