Folha de S. Paulo


O muro nosso de cada dia

A cerca metálica espetada ao longo da Esplanada dos Ministérios em Brasília nesta semana é a perfeita tradução dos muros que estamos erguendo cotidianamente nas redes sociais, nas discussões em família, nas ruas e entre amigos. Muros que criam uma distância cada vez mais abissal entre os discursos pró e contra o governo.

É uma medida de segurança para tentar conter os ânimos alterados de um país há muito dividido, como demonstrou o apertado resultados das últimas eleições presidenciais.

As placas delimitam o terreno para aqueles que vão assistir do vasto gramado em frente ao Congresso Nacional uma partida decisiva para a democracia brasileira.

De cada um dos lados do "muro de Brasíilia" vão estar as duas torcidas desse imenso Brasil convertido em Fla-Flu, entre partidários e contrários ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Um clássico convocado justamente para o domingo, em um roteiro desenhado para fazer coincidir a votação no plenário da Câmara dos Deputados com o tradicional dia de descanso.

O Domingão do Cunha é um circo montado ao bel-prazer de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), um presidente da Câmara que também dá as cartas no próprio processo de cassação em tramitação na Casa.

Um enredo que faz as autoridades de segurança da Capital Federal temer confronto entre as torcidas organizadas e desorganizadas, daí a necessidade de dividir o "estádio".

Como diria o Garrincha, só esqueceram de combinar com os adversários, no caso a galera da geral, aquela acostumada a derrubar os alambrados para acertar as contas com o juiz ladrão.

Que medo dessa metáfora futebolística aplicada ao mundo da política, quando estará em jogo bem mais que uma rodada de campeonato.

Os 513 deputados que vão definir o futuro com ou sem Dilma não poderão ficar em cima do muro. Vão ter que mostrar a cara e proferir votos que os farão entrar para a história, qualquer que seja o resultado da votação.

Muros são simbólicos. Materializam separação, lados que não se comunicam, grupos que não podem conviver no mesmo espaço.

Traduz com fidelidade o clima que nos fez chegar até a votação do impeachment.

Os posts indignados sobre o muro de Brasília parecem fora de lugar em tantas timelines onde vi florescer ao longo dos últimos meses ódio, intolerância, propagação de notícias falsas, insultos verbais, falta de respeito.

Tudo isso ajudou a alimentar um perigoso combustível que foi erguendo muros invisíveis no nosso dia a dia.

A cerca metálica me causa o mesmo mal-estar que o barulho ensurdecedor de panelas que sinalizam o muro acústico daqueles que nem sequer querem mais ouvir o discurso do outro lado.

Sinal de que as palavras e argumentos em contrário vão continuar caindo no vazio. De que não há espaço para o diálogo, de que ao final vai prevalecer o discurso do "vencedor". Entre aspas, claro. Todos nós já perdemos.

O muro de Brasília é um símbolo da derrota e também um alerta de que o circo pode pegar fogo.


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