Folha de S. Paulo


Notícias de um leilão de virgens

"Revelada: a cidade brasileira onde meninas de 11 anos são sorteadas por pedófilos e o prêmio maior é uma virgem menor de idade".

Foi assim que o tabloide inglês "Daily Mail", em sua versão on-line, descreveu em uma longa reportagem na semana passada um suposto caso de leilão de garotas que teria ocorrido em Encruzilhada, município do sudoeste baiano a 385 km de Salvador.

Histórias de meninas rifadas em bingos nos rincões do Brasil volta e meia aparecem no noticiário. Sempre suscitam indignação pelo simbolismo de transformar crianças e adolescentes em mercadoria de um abjeto "quem dá mais"?

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Reportagem do site do jornal britâncio Daily Mail conta caso inverídico que suportamente aconteceu no Brasil
Reportagem do site do jornal britânico "Daily Mail" sobre suposto leilão de virgens no Brasil

PRÁTICA RECORRENTE

Tão logo vi a notícia, fui à procura de mais informações sobre o tal leilão de virgens no município que fica a 98 km de Vitória da Conquista.

Nenhuma das minhas fontes que atuam no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes sabia do caso noticiado na Inglaterra. "Não tomei conhecimento dessa rifa de meninas na Bahia", disse a socióloga Graça Gadelha.

Consultora de importantes projetos e pesquisas relacionados à infância, ela elenca outras ocorrências Brasil afora. "Bingo de meninas é uma prática recorrente. Conheço casos em São Luís e no interior do Maranhão e também em garimpos."

O caso de Encruzilhada, que teria ocorrido em 2014, tampouco chegou ao Cedeca-BA (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), em Salvador. "Não recebemos a denúncia formal. Depois da reportagem, recebi um e-mail com informações de que meninas de 12, 13 anos teriam sido rifadas naquele município", relata Waldemar Oliveira, coordenador-geral do Cedeca.

Nesta terça-feira (22), a ONG encaminhou um ofício à Secretaria de Segurança e à Secretaria de Justiça do Estado da Bahia solicitando providências. "Para que o caso seja apurado e dada assistência às garotas que porventura tenham sido vítimas."

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Reportagem do site do jornal britâncio Daily Mail conta caso inverídico que aconteceu no Brasil
A reportagem do site do jornal "Daily Mail" é ilustrada com fotos genéricas de crianças atendidas pela ONG Menina Dança no Brasil

FONTE PRIMÁRIA

Uma das fontes citadas na reportagem do "Daily Mail" é a ONG Menina Dança, fundada pelo jornalista inglês Matt Roper, 41, que também assina o texto como repórter free lancer da publicação no Brasil.

Autor de dois livros sobre exploração sexual infanto-juvenil em terras brasileiras, ele vive em Belo Horizonte desde 2010. Em "Autoestrada para o Inferno", o inglês retrata casos de meninas prostituídas ao longo da BR-116, uma das principais rotas de exploração sexual no Brasil.

Roper diz que a informação do bingo sexual chegou a ele quando visitava a cidade de Cândido Salles (BA), onde vai instalar uma unidade de sua ONG.

O município deve abrigar a partir do próximo ano uma casa de atendimento a garotas vítimas de exploração sexual na rodovia, onde fazem programas com caminhoneiros. "Nosso trabalho é de resgate da autoestima dessas meninas por meio da dança", explica o inglês.

Ele conta que ficou sabendo do bingo de Encruzilhada por uma psicóloga do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) da cidade vizinha. A partir daí, o jornalista e ongueiro teria começado a puxar o fio da meada.

A segundo fonte citada da reportagem é um advogado de Vitória da Conquista, ligado ao conselho dos direitos da criança e do adolescente da cidade.

"Ele acompanhou a investigação em Encruzilhada e confirmou que a polícia descobriu uma gangue que fez bastante dinheiro vendendo rifas numeradas de meninas." Procurado pela Folha, o advogado não atendeu o celular nem retornou os telefonemas.

CARTELAS A R$ 30

Em letras garrafais, estão em destaque na reportagem do "Daily Mail" os detalhes de como o leilão teria sido realizado. Cada cartela era negociada por R$ 30 e a promoção atraía homens até de outras localidades, interessados no prêmio maior: meninas virgens na faixa de 11 a 13 anos.

Após a publicação, a denúncia foi desmentida pela polícia e por outras fontes.

"Estão negando agora, mas imagino que todos estejam sofrendo pressão", diz o jornalista, que não esteve em Encruzilhada e ilustra a reportagem com fotos genéricas do seu trabalho com crianças vítimas de exploração sexual em outros municípios da região.

Ele defende sua apuração sob a justificativa da cortina de medo que cerca esse tipo de denúncia. "Um conselheiro tutelar confirma que houve sim meninas sendo rifadas em Encruzilhada. O fato foi de conhecimento do delegado, do promotor e da juíza. Aconteceu há um ano atrás. Depois, tudo foi esquecido."

Com a palavra Carla Moreira, atualmente promotora substituta no município, ouvida pela Folha nesta segunda-feira: "O caso foi investigado e arquivado por não ter sido caracterizado exploração sexual das adolescentes envolvidas".

A promotora detalha um pouco mais o que a investigação policial revelou, após a abertura de inquérito. "Um grupo de meninas da cidade foi chamada para vender as cartelas de uma rifa de um celular. E uma delas saiu espalhando que o ganhador teria direito a uma relação sexual com ela", relata a promotora.

O fato ocorreu entre março e junho de 2014 e a rifa não chegou a ser realizada. "Todas as adolescentes foram ouvidas e confirmaram que a dona da rifa não sabia da brincadeira de uma das meninas. Elas têm entre 11 e 13 anos."

Segundo Carla Monteiro, foram ouvidos também a senhora que estava organizando a rifa e participantes. Todos teriam negado à polícia o teor sexual do bingo. "A rifa não ocorreu e o crime não ficou caracterizado."

PERGUNTAS SEM RESPOSTAS

É um estranho desfecho de um caso nebuloso, de difícil apuração em razão do tipo de crime envolvendo menores de idade.

"A história não é bem essa que saiu na reportagem", diz o cabo Aguiar, da PM de Encruzilhada. Ele se nega a dar mais informações e pede que a Folha entre em contato com o Fórum para onde o inquérito foi encaminhado.

A polícia civil soltou nota dando o caso por encerrado. Os conselheiros tutelares também não querem mais dar entrevistas sobre o suposto bingo.

Após a repercussão internacional do "leilão de virgem que não ocorreu", ninguém mais quer falar sobre o assunto na cidade.

A Secretaria de Justiça do Estado da Bahia anunciou, em nota, que vai passar a monitorar o caso por meio da sua coordenação de Proteção, "acompanhando as providências adotadas pelas instituições que compõem o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente no município de Encruzilhada". E esclarece que não compete à secretaria instaurar qualquer procedimento investigativo. O foco será na proteção integral e prioritária de vítimas e testemunhas.

"Essa região é extremamente preocupante, pois historicamente registra muitos casos de exploração sexual de crianças e adolescentes", diz Jaqueline Leite, do Centro Humanitário de Apoio à Mulher, ONG de Salvador. "É uma região complicada também em relação à Justiça. Todo mundo tem medo."

Como o caso envolve menores e correu em segredo de Justiça, a identidade das adolescentes envolvidas foi preservada, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Uma medida de proteção bem-vinda, mas que no caso também serve de desculpa para que se erga um muro de silêncio que impede de se chegar às fontes primárias de um "quase" leilão de adolescentes para fins sexuais.

Independentemente de ter sido "brincadeira" ou uma tentativa abortada de uma rifa que tinha virgens como prêmio, o caso de Encruzilhada é o candidato da vez a entrar na categoria de "lenda urbana".

Perguntas essenciais não foram respondidas, a primeira delas é: por que uma adolescente se colocaria voluntariamente como "brinde" de um leilão sexual?

Waldemar, do Cedeca, desconfia da notícia do bingo, mas deixa no ar a possibilidade de outros tipos de abuso que tem testemunhado no interior da Bahia: "São casos e mais casos de exploração sexual de meninas de 11, 12 anos por políticos, fazendeiros e comerciantes em diversos municípios baianos. Histórias que não vêm à tona nem são investigadas como se deve pelo fato de os familiares serem recompensados, com casas e empregos, para ficarem calados."

Encruzilhada, segundo ele, pode estar no mapa desse Brasil onde miséria, exploração sexual e impunidade se cruzam.


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