Folha de S. Paulo


Vida em um piscar de olhos

"Nunca estive tão realizado como estou agora." É assim que Luis Henrique da Cruz Ribeiro, 35, define seu momento profissional.

No próxima semana, o administrador de empresas retoma suas atividades como consultor sênior na EY, antiga Ernst & Young, após sete anos de licença médica.

Não é um retorno qualquer. A carreira de Ricky foi interrompida em 2008 por um diagnóstico de ELA (esclerose lateral amiotrófica), a mesma doença degenerativa do físico britânico Stephen Hawking, retratada no filme "A Teoria de Tudo" (2014).

Assim como seu famoso colega de batalha contra um mal que rouba as funções motoras enquanto o cérebro continua em perfeitas condições, Ricky volta ao antigo emprego em circunstâncias extraordinárias: de seu "room-office" na residência da família em Alphaville.

O quarto dispõe de todo um aparato médico e tecnológico que, aliado a muita determinação, faz o seu ocupante driblar as enormes limitações de uma doença incurável que o impede de se mover, falar, se alimentar e até respirar normalmente.

"Diferente de quem sofre trauma em um acidente, eu fui perdendo os movimentos gradativamente e tive tempo de me adaptar a cada nova limitação", conta Ricky, por e-mail, complementando entrevista à Folha.

Para se comunicar, ele utiliza um equipamento chamado Tobii Eye que, acoplado a um laptop, lhe permite escrever com os olhos.

Por meio de um leitor ótico que capta os movimentos das pupilas, ele consegue acessar a internet, responder e-mails, postar no Facebook, fazer planilhas e apresentações de estudos. "Ou seja, praticamente tudo que fazia antes, só mais devagar."

RECUPERANDO A VOZ

A tecnologia também lhe trouxe de volta a fala. "Uso um programa que transforma texto em voz", diz ele sobre o software desenvolvido para atender às necessidade de Hawking. No começo, sua fala ganhava o som de um voz feminina, já não havia ainda uma versão masculina, relata ele, sorrindo. "Eu dizia que era minha secretária."

A perda da fala aconteceu em 2012, quando foi forçado a se submeter a uma traqueostomia. Com crescentes dificuldades para respirar, o procedimento drástico foi adotado para permitir a passagem de ar direto para a traqueia por meio de um orifício no pescoço.

É ligado a aparelhos que substituem funções importantes do corpo que Ricky se conecta com o mundo e com o trabalho. "O uso da tecnologia é imprescindível para eu me comunicar e seguir produtivo", reconhece.

Ricky comanda da cama o portal Mobilize Brasil, que se tornou referência no debate sobre mobilidade urbana. A ONG e o site foram criados em 2012 com o apoio de colegas da Fundação Getúlio Vagas, onde se formou em administração pública, e de familiares. Conta com patrocinadores como Itaú e Allianz.

REUNIÕES POR SKYPE

Após uma rotina de cuidados médicos pela manhã, Ricky está a postos para trabalhar a partir das 11h, quando começa disparar e-mails e faz reuniões com a equipe pelo Skype. "Alguns reclamam que não conseguem acompanhar meu ritmo", brinca ele.

É com tal disposição que ele organiza seminários e coordena estudos sobre o tema, enquanto seu corpo vai se adaptando às limitações crescentes.

"A doença se manifestou primeiro na perda de força muscular nas pernas, fazendo com que eu passasse a mancar. Com o tempo, senti a necessidade de usar bengala para me apoiar e depois um andador, até que chegou um momento que só era possível me deslocar com a cadeira de rodas", relata.

Nos últimos anos, ele raramente sai de casa, uma tarefa que requer toda uma logística para mantê-lo ligado a aparelhos vitais.

Sem autopiedade, Ricky encara os desafios cotidianos, em meio a uma complexa operações de cuidados, que inclui fisioterapia, aspirações constantes das vias respiratórias, a presença de enfermeiras 24 horas em sistema de home care.

"Ricky é iluminado. Ele não vê a limitação. Não reclama de nada", diz a mãe, Cristina Ribeiro, que parou de trabalhar em uma grande empresa para para virar sócia e cuidadora do filho em tempo integral.

A família apelou para todo tipo de tratamento. Ele elenca acupuntura, medicina ortomolecular, transplante de células tronco, tratamento espiritual, medicina alemã, além de fisioterapia, fono, terapia ocupacional.

Filho de médico, ele agradece o apoio dos pais e da irmã nessa longa caminhada. "Tudo isso foi mais fácil pois tenho o privilégio de ter uma família que nunca mediu esforços para buscar todas as alternativas de tratamentos e de lazer enquanto eu consegui sair de casa."

NO ITAQUERÃO

Sua última grande aventura fora da residência foi assistir a abertura da Copa do Mundo. Corintiano roxo, ele guarda com orgulho a foto ao lado de Ronaldo, em um dos camarotes do estádio, onde chegou de maca em uma ambulância.

Conseguiu assistir à partida ligado a respiradores, mantidos por baterias e geradores sobressalentes.

São momentos de alegria que se encaixam no modo como Ricky encara a doença. "No dia que descobri que estava com ELA entrei na internet e foi um choque. Tudo que li era negativo. Fiquei muito triste e chorei, mas minha tristeza durou um dia."

Enquanto teve mobilidade, ele se jogou nas coisas que mais amava na vida. Fez uma viagem de dois meses pelo Nordeste com a irmã, retratada em um blog, no qual fazia trocadilhos com o nome da doença: "Viajando com ELA".

"A internet passou a ter um papel primordial na minha vida, tanto profissional, com as atividades e campanhas do Mobilize, como pessoal", afirma.

"Antes da doença, eu gostava muito de viajar, praticar esportes, explorar a cidade e encontrar os amigos. Como agora estou impossibilitado de sair de casa, a internet acaba sendo minha principal maneira de interagir com o mundo fora do meu quarto."

DE VOLTA AO BATENTE

Há seis meses, ele recebeu a visita da diretora de RH da EY, Elisa Carra, com quem manteve contato durante a longa convalescença. "Foi ali que tivemos a ideia de que um retorno seria possível", relata a executiva.

Elisa levou a possibilidade para o CEO da empresa e deu início ao processo que culmina agora com o retorno de Ricky à área de sustentabilidade de uma das líderes mundiais em auditoria.

"Apesar das limitações físicas, a doença não comprometeu o intelecto dele. Então, por que não trazê-lo de volta?", questionou-se Elisa. A decisão organizacional foi tomada em dezembro do ano passado e precisou superar burocracias para se concretizar na próxima semana.

Ricky foi submetido a uma perícia pelo INSS e já foi aprovado para retornar ao trabalho. O jurídico precisou desenhar um contrato especial, afinal ele vai trabalhar de casa e em condições especiais.

O escritório também está em fase de adaptação para que Ricky possa acessar remotamente a rede da EY e se comunicar com os colegas por Skype, por exemplo.

"Não se trata de uma ação de caridade, mas do reconhecimento de um supertalento. A capacidade do Ricky está preservada, prova disso é ele ter construído o Mobilize", afirma a diretora de RH. "Ricky é o único caso de um portador de ELA a retomar a vida profissional oficialmente no Brasil."

O significado de voltar à ativa vai além do reconhecimento profissional. "Tenho uma enorme gratidão à EY pela postura que sempre tiveram comigo e por causa do seguro saúde", escreve Ricky. "Trata-se de uma empresa com valores sólidos e que valoriza seus profissionais."

Ele vai se juntar os outros 240 funcionários portadores de deficiência na EY. "Vendo o Ricky e tantos outros, aprendi que quem estabelece a limitação é o indivíduo. Todo mundo pode atingir seu potencial", enfatiza Elisa.

ESPERA PELA CURA

A exemplo de Stephen Hawking que aos 21 anos ouviu do médico o diagnóstico de Ela como uma sentença de morte, Ricky também contraria todos os prognósticos.

"Nunca penso em quanto tempo falta, na evolução da doença. Fui arrumando atividades para ocupar minha mente e percebendo que muitas pessoas vivem bem mais que cinco anos com ELA."

Ricky segue a recomendação do médico que acompanha desde o início: não sofrer por antecipação.

E se alimenta do sonho de que a tecnologia e a ciência trarão a cura. "Tenho muita esperança de recuperar meus movimentos e ficar curado um dia, mas não pauto minha vida nessa possibilidade nem condiciono minha felicidade a isso."

A volta ao batente na EY e o sucesso do portal Mobilize Brasil contribuem para sua visão positiva da vida apesar da imobilidade física à qual está condenado. "Trabalhar para a melhoria da mobilidade nas cidades brasileiras me gera uma grande satisfação." E repete: "Nunca estive tão realizado como estou agora".


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