Folha de S. Paulo


Brasília, ame-a ou deixe-a

Na sala de embarque de Guarulhos, duas senhoras puxam conversa enquanto aguardam o chamado para o voo para Brasília. "Cuidado com a carteira, só tem ladrão por lá", me diz uma delas. Provoca risinhos de cumplicidade da amiga e ira de minha parte.

"Vou começar a me cuidar agora, afinal foram vocês que mandaram eles pra lá", respondo, para espanto da dupla.

Se há algo que me tira do sério é esse discurso quase sempre vazio e que bebe na fonte das generalizações e dos lugares-comuns quando se fala da Capital da República.

Eu adoro Brasília. Nasci na Bahia, mas minha família se mudou para lá quando eu era criança e me sinto também brasiliense. Portanto, cuidado ao falar mal da minha cidade por adoção que completa nesta terça-feira, 21 de abril, 55 anos.

Em um momento #prontofalei, continuo meu desabafo com as duas senhoras. Dizer que Brasília é "terra de ladrão" é de um primarismo sem tamanho. Como microcosmo do Brasil, Brasília talvez seja a nossa melhor e pior tradução.

É bom lembrar que os políticos lá chegam enviados pelo voto de brasileiros que reconquistaram esse direito há 25 anos. E como nossos representantes democraticamente eleitos, eles são a nossa cara, gostemos ou não do reflexo no grande espelho que é o Congresso Nacional e seus arredores.

Para os que torcem o nariz para a composição da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, recomendo dar uma olhada na sua vizinhança (as Assembleias Legislativas do seus Estados, as Câmaras Municipais) antes de atirar a primeira pedra numa Brasília convertida em Geni.

Quando vejo alguém postar nas redes sociais a hashtag #fulanonãomerepresenta, penso no bordão: "Sabe de nada, inocente". Os políticos eleitos nos representam, sim, queiramos ou não.

Podemos contestar o sistema eleitoral e seus vícios, criticar as bancadas e seus interesses paroquiais, lamentar a presença de "nanicos" e as legendas de aluguel que tomaram de assalto os corredores do poder.

É grande a lista do que está errado no atual modelo de representação que nos leva à urgência da tão falada Reforma Política. E isso só para ficarmos no parlamento, sem falar nas mazelas do Executivo e do Judiciário, que também contribuem para macular a "imagem" de Brasília.

SEM HIPOCRISIA

Não sejamos hipócritas. O Brasil não é melhor do que os seus homens públicos. Nossos representantes são o retrato acabado da mediocridade e da falta de renovação dos quadros políticos e de lideranças em tantos segmentos.

Também não é o caso de generalizar ou cair em um discurso moralista de demonizar a política e os políticos. Sempre haverá aqueles que chegam a Brasília preocupados com os destinos do país e de seu povo. Assim como os picaretas, que já foram até quantificados em 300 e devem ser até bem mais hoje em dia.

Enfim, os bons e os maus políticos são ilustres representantes de um Brasil que se equilibra no "jeitinho", enquanto brada por mais ética e menos roubalheira. Brasileiros que chamam todos os políticos de corruptos e declaram abaixo o valor da compra do imóvel para pagar menos impostos, assim como aceitam desconto no orçamento do dentista em troca de não exigir recibo. E não venham me dizer que somos todos corruptos. Todos o caramba!

Esse é um longo parêntese para explicar o meu desabafo com as duas paulistas que repetiram o que tantos brasileiros vivem dizendo por aí. Brasília é a síntese de um Brasil que avançou em tantas áreas, mas perdeu régua e compasso em várias outras.

O país do "salve simpatia" hoje é habitado por legiões de trogloditas que jogam latinha de cerveja pelo vidro do carro, cortam pelo acostamento e aceleram quando veem o carro da frente dá sinal de que vai entrar.

Tomei exemplos do trânsito, por ser um território onde a brutalidade verde-amarela pode ser medida cotidianamente. Ela se traduz na assustadora estatística cristalizada ao longo de décadas de 50 mil mortes anuais. Convivemos com tais números pavorosos e sempre botamos a culpa sempre nos políticos.

Foi assim que o papo terminou com as duas senhoras na fila de embarque. Ao final, elas concordaram comigo e uma delas até me confidenciou: "Fui visitar uma amiga e até gostei de Brasília".

PRAÇA BRASILIENSE

Eu amo Brasília. O Plano Piloto foi cenário da minha adolescência. Cresci numa superquadra da Asa Sul, dentro de um conceito de morar que nasceu das pranchetas e do gênio de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Era uma delícia encontrar a turma debaixo do bloco -os edifícios de pilotis transformados em praça. Uma Brasília que talvez sobreviva apenas na minha memoria afetiva.

A capital moderna e do futuro encontrou pela frente o Brasil real. O ordenamento urbano idealizado por seus criadores foi atropelado por um inchaço populacional que hoje se traduz em engarrafamentos e índices crescentes de violência.

Brasília, no entanto, evoca em mim Bossa Nova. Aquele Brasil de JK, dos anos 1960, charmoso, refinado e orgulhoso de sua grandiosidade. Eu vivi a Brasília do rock'n'roll, resposta de uma geração que cresceu na Capital Federal e no Brasil dos generais. Deixei Brasília nos final dos anos 1990.

Hoje, quando retorno para visitar parentes ou a trabalho, tenho a sensação de que a Brasília de Niemeyer foi sufocada por outra, que tem mais a cara de Goiás, o Estado que abrigou a nova capital.

O arquiteto das curvas perdeu a parada para Joaquim Roriz e outros administradores da mesma estirpe e dos mais variados matizes ideológicos. Todos aquém do belo sonho de uma capital de vanguarda no centro de
um planalto vazio.

DO ROCK AO SERTANEJO

Essa nova face se traduz na trilha sonora. Arrisco dizer que os jovens brasilienses, tanto do Plano Piloto quanto das cidades satélites, hoje ouvem mais música sertaneja do que o forró dos candangos nordestinos, que foram para Brasília erguer a cidade planejada e por lá ficaram espalhados pelos seus arredores.

Também não se ouve tanto o repique do samba, preferência dos cariocas que eram maioria no funcionalismo público para lá transferido.

Constatações que não diminuem o amor que sinto por aquela terra avermelhada e por aquele céu único e infinito de Brasília. Portanto, turistas, moradores, políticos, candangos e brasilienses, da gema ou adotados, mais respeito com a minha cidade.


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